20100213

Porto, Portugal Toda a gente fala de gigantes. Mas só uns poucos apanham as pontas de alinhavos esquecidas no soalho. E quase nenhuns semicerram os olhos aos padrões dos pavimentos de granito. Um brado tonitruante assusta, mas também revela uma posição débil, enquanto que um sussurro atrás de reposteiros pesados pode silenciar uma multidão. Mas é de nuvens que as cabeças se alimentam e não das gotas de suor que se evaporam por elas. Um esforço conjunto do polegar e indicador traz à atenção uma unha morta, curvada no seu próprio esquecimento. Seguram-na carinhosamente por uma das pontas facetadas enquanto sopram a mortalha de pó que a envolve. Ambos sentem uma angústia de perda, um amor parental distante, mas não conseguem evitar deitá-la à companhia de excrementos.
Xcaret, Península do Iucatão, México - A minha filha fez febre – lançou a mãe, orgulhosa. - Hm, uma febrezita? – bocejou a outra mãe, perdida em pensamentos de leite. - Febrezita? Mais de 70 graus! Prostrou todo o infantário. – cantou gloriosa, a primeira, em honra da petiza rosada. - A minha, – ignorou a outra com um sorriso – fez um berreiro tal, no Domingo, que derreteu a paciência da congregação inteira enquanto vomitava nos 27 cestos da colecta, o anjinho. - Eu, quando chego a casa, – ribombou a progenitora como uma peça de artilharia – nunca sei o que vou encontrar; aliás, muitas vezes nem a encontro, de tão virada do avesso que está; é só entranhas, canos e mortos velhos, de tão levada da breca que a minha menina é. - Nem queira saber o que a minha fez, ainda há dias; atirou com os sete volumes do Proust da estante abaixo e meteu à boca todas as páginas que tinham notas de rodapé escritas a lápis pelo pai. - esbofeteou com alvura a maternal adversária. Nisto, uma terceira mãe entra em cena - "Mui alegre e prazenteira, mui ufana e esclarecida, mui perfeita e mui luzida, muito mais que de antes era."

20100206

Uluru, Austrália qual é a coisa, qual é ela que se diz e por dizer, enrola a glote antes da língua do bolor raspa a penugem e aquelas manchas que custam a sair e desmancha os ombros encolhem mas não estão indiferentes ao frio que racha a fala todos são nada do que fui e regurgitam biscuit de fancaria que disponho religiosamente em escaparates de incineradoras onde me mostro e acabo também, diluído em nada meu, parasita hospedeiro sorrateiro sublimo aquela coisa, que faz franzir a pose e leva vara, manada e cardume dócil cubro-me de pele alheia e vou dando fisgadas em cada boca que se abre, escondido mas nunca sei qual é ela.
Blue Mountains, Austrália O ar seca, numa guelra de nervos ofegante entre tacto e toque; escapa-se o suor entre os medos.
Tóquio, Japão Novelo em punho, entro no labirinto de ideias-não-concebidas. Demasiado tarde percebo que devia ter deixado uma ponta de fio presa à realidade. Olho para a emaranhada felpuda, e noto um esgar sarcástico. Ainda tento domesticá-la, tricotando um mapa, mas os dedos picam-me como agulhas. Irritado, desenrolo o fio matreiro em forma de palavras acesas que, de tão rubras, rapidamente se transformam num rastilho a chispar na minha cauda. Só de pensar na bomba de coisas ensarilhadas que tenho entre mãos, desato a escrever uma saída.