20100331

Ilha da Boa Vista, Cabo Verde O ilhéu, separado do continente por um braço de mar, tinha uma fortaleza com seis canhões apontados para o lado errado. Às suas costas chegaram hordas de polipropilenos em jangadas de vasilhames que rapidamente surpreenderam a bateria sonolenta, enferrujando-a logo ali. Tomado o ilhéu, a noite foi lambida a fogo, imolando-se os trastes num festim pagão. No dia seguinte, as cinzas reunidas em pequenos grupos envergonhados, dispersavam-se na aridez da impunidade.
Chichén Itzá, México Em duas penadas: a escrita do caminhar tem sido inexplicavelmente negligenciada. Páginas e páginas de relatos literalmente arrasadas por correntes de ar viciado. Não nos dizem tudo, as pegadas num areal? A linha funda e sinuosa de uma consciência pesada, o pé-ante-pé imponderável dos amantes, não deveria tudo isto ser medido, registado e cartografado? Para quê plagiar tendenciosamente com as mãos tudo o que os pés já deixaram bem claro na genuína espontaneidade de um corpo inconsciente? E não me refiro apenas às zonas densamente povoadas onde todos deixam marcas e acabam por dizer muito pouco; levante-se o olhar do chão e conseguimos ver além, em solo agreste, tímidas linhas de passos arrojados, caminhados por anónimos calcorreadores. Formem-se já batalhões de analistas de trajecto, licenciem-se os cartógrafos de rasto; urge seguir estas peugadas antes que sejam pisadas de novo. No entanto, e para que não se ficcione a veracidade dos caminhos, o estudioso destas matérias deverá possuir uma de duas características que impeça que os seus próprios passos se imiscuam nos trajectos em estudo: ter algo de pássaro ou, em alternativa, de anjo; algo que mantenha o percurso intocado. Poderá o leitor mais cínico dizer que, se pássaro, a atenção logo se virará para a mais gorda minhoca e se anjo, pouco ou nenhum interesse terá pelos assuntos terrenos, uma vez que sabe de antemão o destino de todas as coisas. Poderá.

20100330

Ilha da Boa Vista, Cabo Verde Os barcos são lugares estranhos. Soltos das regras da terra, nunca chegam a estar verdadeiramente ao nível do mar. Andam, navegam, pelo meio da ideia que os homens têm como destino. Podemos pensar que encontramos um cargueiro atordoado a cravar os dentes na areia como que a repensar todos os erros que o colocaram nesse impasse, mas tudo não passa, como constatamos a seguir, de uma imprudência causada pela bruma seca com que as areias do deserto próximo nos confundem, impedindo a clara e enferrujada visão de décadas de coisas estranhas que teimam em flutuar.

20100328

Calheiros, Ponte de Lima, Portugal O velho cetáceo corcunda deslizava numa migração tranquila quando sentiu um enorme desejo de saltar fora de água. Ora se numa baleia-de-bossa um desejo só pode ser enorme, a vontade de o concretizar é, inevitavelmente, imensa. E não pensou duas vezes pois isso implicaria um novo mergulho abissal seguido de um esguicho ciclópico que lhe causava imensas dores abdominais. Assim, sem mais demoras, flectiu a barbatana dorsal em movimentos ascendentes, impulsionou o gracioso volume na direcção da superfície e emergiu, lançando meio corpo fora de água, enquanto rasgava um sorriso de barbatana a barbatana, caindo a seguir de costas com um estrondoso sucesso. Nesse mesmo instante, um turista demasiado obeso fez uma 'bomba' na piscina do resort enquanto o barman lançava uma pedra de gelo não tratado num copo meio cheio de grogue, salpicando o balcão já peganhento. Pode-se verdadeiramente medir o nível de satisfação de um acto espontâneo pela magnitude da sua ostentação? Uma gota de suor cai do corpo musculado num hibisco praticamente seco.

20100326

Kamakura, Japão O pescoço taurino emergiu das águas trazendo consigo uma cabeça das mais redondas que se podem imaginar. Estava em paz, ondulando ao sabor agridoce da brisa soalheira. Imaginavam-se dois olhos, pela atenção com que fixava a lonjura. Alguns cínicos, agachados num ponto de vista mais seco, conjecturavam sobre o que escondia aquele pico de icebergue, mas nós, com uma experiência de anos à tona de água, sabemos bem que abaixo daquele pescoço hercúleo existe apenas uma longa corrente atada ao tampo de um ralo.
Nova Iorque, EUA A vedação alta apanhou um magote de transeuntes. Com os dedos entrelaçados na rede, faziam leves sinais com a cabeça, entre eles, pontuados por um ou outro escarro lateral. Os lábios inferiores distendidos apontavam para a frente, em vigorosos movimentos de queixo. Tinham os dias contados. O responsável da obra não gostava de mirones. Mandou recolher as redes, entregar a apanha do dia a um lar de idosos e levantou um muro, o que lhe tirou a luz. Às cegas escavou um túnel, o que lhe tirou a escolha; foi sair do outro lado caindo na malha apertada da populaça. O que lhe tirou o pio.

20100304

Sydney, Austrália Em plena savana de Masai Mara, uma curva apertada do rio Talek agarra um bosque de acácias. Na margem, uma tenda assiste à chegada da noite africana. Fechado no interior deste enclave um homem tenta, em vão, adormecer. Os dois metros quadrados do seu território não são fáceis de defender. Impotente, ele observa as sombras que entram e lentamente afundam o seu corpo em escuridão. Um cheiro hostil tinha já invadido o espaço e ressonava a um canto. As paredes mexem muito devagar, dando um ar irreal à sua insónia. Deitado de costas ele sente os toques insistentes da lona, enquanto fixa a estrutura de alumínio, mantendo-a presa. Por instantes tenta perceber como foi capaz de deixar o conforto de uma vida picada a ponto para se deitar a perder nesta viagem de fanfarronice. - Mulheres,... e aqueles palhaços da seguradora - rosnou, irritado. O som da sua voz soou-lhe estranho, naquele silêncio, e espantou as suas divagações. Estava de novo alerta; reparou que se mantinha vestido e calçado como se fosse a algum lado. Isso, e a impossibilidade de se levantar, com aquele pé direito, dava-lhe um certo ar de defunto. A pouco e pouco os ouvidos começaram a abrir-se aos sons que acordam lá fora, deixando-o com a desconfortável sensação de estar isolado mas não sozinho. Cada guincho, cada resvalo, cada resfolgar longínquo, trazia consigo algo estranho, inquietante. A memória auditiva é um poderoso tranquilizante; um estouro de um escape livre, um ranger do soalho, um grito de mulher histérica, tudo pode ser digerido com um sorriso, conhecendo-lhe a causa; agora isto... De súbito, um estalar seco de ramos quebrados com violência trazem uma respiração forte e possante ao lado de fora da tenda. Coberto por um formigueiro, o homem encolhe, pára de respirar e sente o impacto de 6735 folhas secas a serem esmagadas por 938 pequenos galhos secundários que se estilhaçam sobre si próprios, cravando farpas num solo já vermelho. De súbito, o silêncio. Quase sem ar, o homem arrisca uma golfada lenta; lá fora, um exalar gutural seguido de dois passos secos fá-lo arrepender-se. O imponente colosso, pois só assim o pode ser, rodeia o perímetro em passadas que marcam o terreno. Pelo baque deve ter uns oito cepos por membros, atirando-os em movimentos lentos e descompassados. Parece não ter pressa. Parece que sabe o poder que exerce sobre aquele homem envolto em mortalha. Entretanto o homem roda sobre si mesmo, expondo umas costas ensopadas em suor e olha fixamente para o fecho de abertura da tenda, agora à sua frente. Na escuridão total aquele fecho tem um brilho tentador, convidando-o a abrir os seus dentes afiados. Mas o homem não se mexe. Analisa o adversário, que parece dirigir-se agora para a borda d'água. Um a um os oito troncos sulcam ruidosamente o leito do rio - um mero fio de nascente face àquele leviatão. Assim obstruído, o caudal transborda e aproxima-se perigosamente da tenda. O homem quase arrisca deslizar para mais perto da entrada quando um novo som redesenha-lhe o monstro; com os membros ainda a revolver a água, o topo de uma acácia é quebrado em dois numa chicotada. "Pelo menos três corpos de altura,...e uns vinte tentáculos.", pensou. Da ramagem arrancada, vinham sons triturados de um ruminar pastoso. Já invadido pela água barrenta do rio, o homem experimenta deixar passar o calor de uma ligeira saudade das tardes tranquilas a preparar processos de fraude, em frente ao enorme relógio de parede do escritório, mas curiosamente a sensação não foi apaziguadora; era como se parte de si estivesse já a ser devorada pelo ser sem forma que se expandia lá fora, eriçando os seus instintos mais adormecidos. Chegou-se ainda mais perto do fecho dentado, sentindo-o roçar-lhe a testa. O odor à pele velha e húmida daquele gigante disforme, subia agora a margem na sua direcção. Antecipando o confronto, o homem deixa-se tomar um pouco mais pela sua simetria e arqueia ligeiramente a espinha dorsal, juntando as omoplatas. Já não é só um homem. É o fim de uma hibernação. A tenda começa a tomar uma forma humana. No exterior, a encarnação mitológica avança pesadamente pela zona pantanosa que agora envolve a tenda. Bruscamente, muda de direcção, contornando-a. O homem, impossibilitado de rodar dentro do seu casulo, apercebe-se que o monstro se estendeu e que tem agora uma muralha de carne viva a envolvê-lo. Um bafo quente e húmido ensopa o ar de miasmas e acelera o seu metabolismo. As mãos cravam-se no fecho reluzente, aguardando a ordem que os dentes não descravam da língua muda. Tudo se cala, na noite. Um frenesim contido vibra no couro da besta. É então que um formidável bramido rasga a savana e estala a estrutura da tenda. De imediato duas mãos esventram o fecho metálico e um corpo arqueado lança-se em pleno ar num grito muito pouco humano. Estremunhado, o velho elefante acorda, olhando em redor. A vinte passos, a toda a volta, continuava ali o fosso escuro. Depois, as grades em forma de lança africana. Mais além, depois do passeio bordado a relva artificial, estava o muro alto e, ao longe, os últimos andares de alguns prédios de escritórios. Tirando o novo casal de hienas, em quarentena, todo o jardim zoológico dormia. O paquiderme passou a tromba pelas têmporas enxugando alguns suores nocturnos. Não tinha memória de um pesadelo assim. E a sua memória era prodigiosa, diziam. Se bem que, sendo nascido e criado em cativeiro, a memória era coisa que não tinha muita utilidade. Tinha de admitir que podia muito bem estar a precisar de ajuda profissional. Fumou um cigarro, enquanto esticava as pernas pelo pátio, prometendo a si mesmo marcar uma consulta no dia seguinte, à primeira hora.