20110222

Kompong Pluk, Cambodja Com alguma timidez, Jubal Pastorius soltou o aperto de mão com que recebia o superintendente da força e rolou colina abaixo, revelando a criança que havia dentro de si. O nível de constrangimento subiu rapidamente, alagando os presentes até aos tornozelos. Ninguém se atrevia a dar um passo, com receio daquele ruído desagradável que faz a peúga sintética encharcada no interior dos sapatos de sola. A criança revelou-se, por sua vez, estranha. Diferente e um pouco sisuda. Dava-se ares de jovem adulto. Ouve mesmo quem comentasse "Meu Deus, crescem tão depressa; um dia andamos com eles ao colo e no outro...", como fazem os pais extremosos quando o benjamim bate asas. Por esta altura, o adolescente tentava marcar uma posição, urinando indiscriminadamente à sua volta. O superintendente, agastado, sentia-se velho. Subitamente, um lado feminino começou a despontar no gandim. Foi o lado esquerdo, e ele apaixonou-se. Neste momento, já todos tinham puxado uma cadeira.

20110214

Bokor Palace, Phnom Bokor, Cambodja Mal deu por falta dos óculos, a dona levou as mãos à cabeça, onde eles costumavam poisar. Os dedos andaram às cegas pelos rolos do cabelo, desalinhando uns caracóis que mais pareciam lapas, de tão agarrados ao couro cabeludo. Em vão. Bateu com as mãos no peito, nos quadris, mas de óculos, nicles. Virou a casa de cangalhas. Foi de gatas até ao contador de salão, ansiosa por novidades, e ele mudo como um criado. A senhora já não via nada à frente. A casa, sem óculos, parecia mais nova. Quando se procura um pertence perdido, naquela fase em que já esgotamos todos os cenários e retrocedemos todos os passos, geralmente morde-se o lábio e coça-se a nuca, antes de partir para os recantos que há anos não visitávamos. Como a viagem é tomada à pressa, não levamos um agasalho nem a merenda, e o ar desalinhado que a angústia nos traz, faz com que os outros atravessem para o lado de lá, sem se aperceberem da firmeza de carácter que nos guia. E as surpresas? E aquelas coisas que encontramos, sem querer, e que nos tentam desviar do caminho? Quando, por exemplo, procuramos uma caneta dourada - e gravada, com dedicatória sentida -, de coração apertado à espera do pior, e nos aparece, vinda não sabemos de onde, uma forma de pudim que já não era usada há dois invernos? Pomo-nos logo a antecipar o prazer de um Abade de Priscos ao jantar, e votamos a pena perdida ao mais cruel esquecimento. A desfocada doméstica assim era posta à prova. Ao dobrar a prateleira mais baixa do camiseiro dos fundos, a velha rela do seu rebento, agora militar, atingiu-a em cheio no coração. A lágrima que caiu no vazio, lembrou-lhe os óculos perdidos. De costados no taco, arrastou-se para debaixo da cama, onde uma nota de cem escudos lhe trouxe à memória o mês sem reforma. Quando se lançou pelo fundo falso da clarabóia, deixamos de a ver. E de poder contar seja o que for. Afundado no sofá da sala, o gato não aguentou mais e entreabriu os olhos. Não vendo a patroa levantou-se em arco, esticando as articulações, e abriu as goelas desmesuradamente. Por de baixo dele, mornos e cheios de pelo, escondiam-se os óculos da dona. Fica por explicar se aquilo foi um longo bocejo de abandono ou uma surda gargalhada de mafarrico.

20110203

Phnom Penh, Cambodja Um C de campo, cheio de voluptuosas beringelas da Índia, aquelas roxas de pedúnculo verde que nos fazem diabretes. Depois um A, de fim de zebra labiríntica, criatura onde só nos conseguimos perder, pois nunca a encontramos quieta. No N nada vigorosa, em pernada de barbatana, pondo a vaga num tubo que se desenrola em água morna. Quem se chega ao lânguido G, de lagarto de contas, não calcula a alhada em que está metido, se não lhe der o devido valor. Reencontrado o angélico A, somos levados a pensar - que ingenuidade - num elegante déjà vu, quando, na realidade, é um novo reflexo do espelho embaciado por biscoitos e bolinhos de forno, no bulício do pequeno almoço. Se olharmos para o L, com o devido respeito, sentimos nele algo de tailandesa no arrozal, de convicções fortes e mão certeira, postura de junco e base de templo. Ah! - aspiramos fundo, no silêncio do H – façamos uma pausa. Mais tarde, nada impede que se encontre o A, pela terceira vez, na cor amarela, e muito menos que se rasgue um sorriso de satisfação ao sentir o coração tão quente, tão primário. Mesmo inevitável, é semicerrar os olhos ao poderoso S, de sol, de fim dos enigmas e do princípio da sorte.