20110329

Deserto de Wadi Rum, Jordânia Ao condutor do funicular de Artxanda só lhe era reconhecido ser uma cabeça. Isto, se é que se pode chamar cabeça àquela secção longitudinal entre a pala hirta do bonezito revolucionário e a metade superior do bigode gendarme que o tablier se esforçava por ocultar. Mas nem é preciso saber se é correcto ou não dar tal nome a essa nesga de funcionário, pois é exactamente esse pedaço que lhe basta para ir aos limites de uma vida que muitos, de tanto suspirar por ela, ganham sopros no coração. Um homem assim vivido, tem a serenidade de aguardar pelo fim do coro de gargalhadas injuriosas, para depois, pacientemente e sem nada a esconder, assombrar com a verdade: - Levado por forças mudas o habitáculo eleva-se, encarando bem de perto o mais profundo da terra. Sem inclinações mundanas, passo rente a tudo o que sustém a encosta; os extractos, as fissuras ameaçadoras onde coabitam a brita e o lajedo, subindo sempre, e sempre mais detalhado é o desespero que se agarra à rocha e derrapa no entulho. Haverá algo mais elevado que um vislumbre dos cantos mais rudes da alma da terra? (Aqui aguarda-se a saída ordeira de todos os passageiros, para que, e sem a possibilidade do testemunho popular, o bonezito desapareça do posto superior e desponte, fazendo jus ao clássico número de casino com dois armários e um alçapão - este último quase esquecido por todos, de tão enlevados que estão pela reputação internacional do ilusionista -, na cabina baixa do funicular, mais vigilante do que nunca, apesar da enganadora apatia.) - Haverá. Vê-la subir aos céus, enquanto descemos, de cabeça baixa e dever cumprido, para cada vez mais perto de onde tudo começou. Que magnífica dualidade: caímos vertiginosamente nas entranhas do ferro e da madeira talhada, esmagamo-nos por onde a multidão se parte em dois, e é aqui que os céus se abrem, de par em par, com tal estrondo, que tememos uma chuva de estilhaços. E tudo isto se repete de 15 em 15 minutos. Pelo menos, no meu turno.

20110313

Viseu, Portugal O lado desconhecido, normalmente pintado de negro profundo é, se pensarmos bem, o que mais oferece a outra face. Isto levanta um problema de pigmentação: como pode ser obscura uma faceta assim tão esquiva aos ultravioletas? Albina, é o mais certo; a expressão mais insípida de um caco de alva porcelana. Mas, e o inverso? Aquele mais radioso? O que se nos abre, despudorado, mostrando uma fileira de esmaltes planos e rigorosos, onde nada de interessante se consegue agarrar? De tão exposto a uma luz maior, só se nos oferece em tom baço, escuro e enrugado. O melhor, mesmo, será trabalhar o recheio, fazendo brilhar umas arestas bem polidas.