20110612
Viseu, Portugal
Já arrasto a memória de uma cadeira há algum tempo; cansado, fico à espera da próxima esquina. São umas criaturas extraordinárias, as esquinas. Assim uma espécie de curvas, mas com carácter; e quando ornadas por um gaveto saliente, tornam-se irresistíveis. Só apetece ir lá dobrá-las, com uma forte guinada de ombros.
Para mal dos meus pecados a rua segue recta, num traço contínuo. A ansiedade foge-me para debaixo do esterno e põe-se à coca, pronta a apertar o gasganete aos pulmões. Atrapalhado, bocejo convulsivamente. À minha volta há gente a falar de costela mendinha e rolos de massa folhada, com requintes de malvadez. Sinto o desconforto de usar demasiado casaco para o abafado do dia; acarinho a intenção ousada de o despir e surpreender a roupa interior com um ou dois arrepios. Talvez mais logo.
Prossigo, resoluto. Dar passos largos é uma atitude altruísta, especialmente quando aqueles para quem os damos só conhecem o saltitar medroso ou o arrastar de uma flebite. Uma vez dei dois espirros a uma fulana sisuda; uma outra, condoí-me com o ar inerte de um velho e dei-lhe uma cabeçada. Em ambos os casos fui mal entendido.
A rua que desço é tão paralela ao centro urbano que nunca se cruza com ele. Se na praça larga, mesmo aqui ao lado, gerem-se fortunas à desgarrada, nesta periferia do quarteirão ainda se fazem atenções.
Estou numa casa de borrachas a investigar vedantes. Do outro lado do balcão um bigode farto segura um metro de madeira encastoado a cobre, condescendente com a minha morosidade.
Subitamente entra um monstro do teatro, com peça em cena e tudo, à procura de uma informação. No interior da loja, pendurada num guiché de vidro martelado, uma velha dá um grito de satisfação enquanto o bigode se franze de orgulho. Em três actos, o actor é embalsamado e posto em exposição ao lado de outras figuras célebres, já desaparecidas.
Curiosamente, esta é a única parte verdadeira da história.
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