20151118

Efeso, Turquia

Conheci, assim de passagem, um sujeito de semblante obtuso (mais como o ângulo aberto do que o discernimento fechado) que tinha por hábito tomar nota de tudo o que lhe ia sucedendo ao longo do dia. E quando digo tudo condescendo com a inimaginável enumeração de episódios encadeados na sebenta que enrolava no punho.
Indiferente ao nexo, hierarquia ou verosimilhança, era irredutível quanto ao rigor da sequência. Banalizo-o (e a mim próprio) ao tentar exemplificar esta, digamos, obsessão cronológica pelo ditado, mas a sua nota “Acordei a custo, tal era a força da goma remelenta que insistia em me manter na escuridão.”, nunca viria antes desta outra: “Estava eu quase a ser alcançado pela figura disforme e tão familiar nos meus pesadelos, quando um baque surdo, como o que faz uma velha a cair abaixo da cama, me acordou.”. Ao descer a rua pelo passeio da direita (onde se respirava com menor intensidade a exaustão automóvel) estenografava com vigor e dislexia: “Desço esta calçada íngreme, certo de que a escolha do lado concordante com o trafego insuflará algum apreço ao meu único par de pulmões.”. Num almoço, após destrinçar uma espinha de faneca da garfada iminente, registou: “Foi por um triz! Um mero soslaio fortuito revelou a boa peça que me saiu esta faneca dissimulada com a sua espinha prestes a travar-me a goela.”.
Aconteceu mais tarde, quando tomava notas do entardecer - fazendo algumas referências ao estado preocupante das costuras gastas da sua jaqueta - que o interpelei pela primeira vez. Foi como conversar com um diretor de cena ou um retratista. Cada frase cuidadosamente adaptada ao espaço entre linhas; cada entoação ou tique dissecado em superfície pautada. Aprendi, deste modo gaguejante, a remoer um diálogo. Tive tempo, entre deixas, de repensar todas as veleidades ocas que tendem a escapar entredentes. Percebi a displicência da fala e tornei-me, desde esse dia, muito mais mudo do que antes.
O sujeito lá ia falando, ou melhor, respondendo delicadamente às minhas indiscrições, transcrevendo-nos com naturalidade. Explicou então, paciente, o propósito do seu método.
Recordo-me que na sequência dessa revelação, passei rapidamente de uma estupefação maravilhada àquela irritação provocada pelo reconhecimento da evidência banal. Uma reação que se repete cada vez menos, ao longo da vida, e que tem o dom de nos deixar menores e menos fantasiosos. Como crianças que crescem, e que a cada pergunta respondida com uma aridez bem intencionada, vão perdendo a capacidade do irreal.
O compromisso daquele homem era então o seguinte, digo eu já amargurado e consciente de estar a destruir efabulações: registar cronologicamente todas as ocorrências de algum modo ligadas à sua existência física e os exercícios de raciocínio daí resultantes. Deste modo, praticando com inflexibilidade, ia-se, por assim parafrasear, da lei da morte libertando. Eliminando arquivo morto. Quando inclinava a cabeça para tomar notas, o assunto escorria e gotejava tinto, no papel, sendo absorvido por uma qualquer regra da química que não cabe aqui questionar, uma vez que funciona em favor do exposto. Aliviado do peso da memória, o cérebro suspirava longamente soltando aquele rangido do reformado que se recosta num banco ainda ensolarado. O sentimento de perenidade ficava assegurado por uma consciência limpa. Nesse vazio tudo era novo, vivido com o afeto de uma primeira vez.

20151111

Capadocia, Turquia

Um transporte público. Troncos retorcidos de um borboletário. Recordações de existência rica, solitária. Uma investigação cheia de indiferença. A caixa dedicada a pesos de chumbo fiéis à balança. Torvelinhos de folhagem e fiapos. Portas diferentes em casas sempre iguais. As carruagens ainda sonolentas lembram paixões recortadas de antigas capas adolescentes. A monotonia de um linear é trazida por um carril. Politicamente, o extremo-centro é ubíquo. Música. A frescura em decomposição das ideias imberbes. Barbas diariamente desfeitas. Dias igualmente desfeitos. A paragem tarda. O amor é eterno. A resiliência teima em vencer o cansaço. O enfado dos combinado de moda. Fazem-se deslizar possibilidades com a displicência com que se olha pela janela. As novas e maravilhosas articulações do polegar, esse elemento diferenciador. A condescendência para com a posição de autoridade. O imbecil que sonha, ou que sonha que sonha. A cumplicidade do sol baixo das manhãs de inverno que esconde quem não queremos ver. O ar mortiço das caras iluminadas por baixo. Os olhos que baixam nos ecrãs e esquecem as nuvens de cima. E o redondo das tampas de saneamento, esconde o quê? Há olhos que fogem uns dos outros, num jogo da apanhada. O arrasto dos gradeamentos apaga as trepadeiras que os abraçam. Os sons de fundo tornam-se viscerais e afeiçoamo-nos às vozes gravadas. Há uma tristeza nas luzes que ficam acesas de dia, esquecidas por um desabafo noturno. Cartazes dividem a cidade em tracejados, códigos de cor e tipografias revisitadas. Nota-se o rasto diário do gotejar vermelho da saudade. O espaço a mais e a falta de espaço para o sentir. O suplício da proximidade que se esvazia lentamente. Entre o ânimo e o desencanto, a ida e a vinda, cai o dia.

20151107

Rio de Janeiro, Brasil

Isto é o real, a realidade, o trincar de uma coisa dura como cornos seguida de uma fisgada fina. Depois há-de vir a recompensa - um dia - o esquema que faz o mamífero sofrer as cabriolas do inferno para ganhar um peixe. Pelos escritos (qualquer que seja a cor da capa ou a inclinação da pena) a primeira, a realidade, dura uma vida, a outra, a fantasia, nunca mais acaba. Parece um bom trato, uma oportunidade única; vale a pena investir nisto de ser um afável altruísta e seguir o guia.
E o além? Não o ali mais à frente mas o depois. Um mundo novo e admirável, segundo os que nunca lá estiveram, perfeitamente desconhecido, celestial, nivelador por cima, onde se processa a reforma vitalícia da incansável nova plenitude. Parece que estou a vê-lo, aqui do desconforto desta soleira de pedra. Pressinto que tenha um mar sem ondas, areia morna que se molda a qualquer desejo, um ou outro caranguejo de casca mole intrigado por fazer parte da cena, e tudo isto num prado sem socalcos ou sobressaltos, como seria de esperar. Não fosse o desconforto desta caleira - exímia atiradora, diga-se - que insiste em apontar a sua pinga gelada à fresta entre o colarinho e a última madeixa de cabelo, quase sinto o calor solto pela terra deste mundo tão igual à minha fraca imaginação.
Mas,… e se esta é a segunda parte da história, numa versão invertida? E se este agora é, afinal, o depois? O resultado de uma deliciosa existência anterior, de uma interminável juventude etérea, que chegou ao fim? Andamos a flutuar num estado de êxtase durante sabe-se lá quanto tempo, muito antes do real ser ele próprio, tivemos todos, sem exceção (que é coisa desconhecida da perfeição) uma existência de epifanias múltiplas, e agora acabou-se e estamos todos aqui, com as unhas dos pés bem cravadas numa terra que espera paciente a nossa decomposição anunciada? Como o coitado do projecionista confundido pela modorra, que exibe primeiro a segunda parte da história, onde todos viveram felizes para sempre, e depois termina com a projeção do início da saga onde tudo são tormentos e desilusões (aquilo que forja o herói pronto a revelar-se na segunda parte), deixando no ar o abrupto do interrompido.
Confirmando-se esta efabulação de um louco, então por certo que todas as histórias coletivas de um estado eterno são antes memórias turvas, deslocadas, mal catalogadas por alguém displicente. Os livros não seriam mais proféticos, mas saudosos memoriais dos últimos dias, escritos como relato até ao momento em que se instalou o êxtase da felicidade. A partir daí mais ninguém se deu ao trabalho de registar em ata, de manter a coerência histórica. E para quê, perguntariam com razão. Só escreve quem sofre. O satisfeito esfrega as mãos vigorosamente, como quem faz lume, e olha em redor com o único intuito de mostrar a sua expressão de regozijo.
O que sentimos neste momento, no absorver diário desta vida esperançosa, é como admirar a imagem de um belo vaso cerâmico, sumptuosamente decorado com volutas e trinados celestiais. Imaginamo-nos um dia como os orgulhosos possuidores que o contemplam no salão, rodeados por um nevoeirozito de fina inveja dos ilustres visitantes que, falseando um interesse pelo estado da nossa saúde de ferro, ali vêm deixar uma lágrima salgada. Na realidade, esse vaso já o tínhamos desfeito em mil pedaços quando em crianças desobedecemos com uma bola de couro ao cinto ameaçador de um educador severo. O sonho da peça é um mero caco perdido nos escombros da infância, um estilhaço cravado bem longe de qualquer bisturi.
Que desarranjo, se assim for. Quantos inconvenientes isto irá causar a quem atear esta ideia, nos seus planos de conduta. É certo que os locais de culto darão belíssimos museus, cheios de recantos para os ecos do sussurrar. Quanto ao resto, ao que está escrito, é tudo uma questão de mudar, aqui e ali, o tempo do verbo.