20161130

Brufe, Portugal

O escritório disponibiliza aos funcionários um espaço de lazer no mais profundo das suas instalações. Convenientemente perto dos cubículos sanitários mas afastado o suficiente para não os sentir como próximos, este lounge equipado e funcional faz janela com o exterior. Daqui apreciam-se as vistas, fuma-se e sorvem-se intermináveis cafés. Quando o tempo permite entreabre-se uma frincha para libertar o fumo. Vista das traseiras do prédio a janela é como um tubo de escape de uma máquina a carburar em ponto morto. Um andar parado num engarrafamento de pisos. Como explica o pesado gradeamento abraçado à janela, este quartinho dos fundos é um espaço seguro. Mantém a ferros a integridade física dos de fora e dos de dentro. Por ali só se esgueiram as pombas. Por ali só se escapam as mágoas.
Mas a morte ronda perto. De facto, todo o horizonte da janela é tomado pela morte. Não a morte seca, arrancada de súbito e a frio, mas a morte composta. Encenada e vistosa. A morte como é imaginada pela vida temerosa. A morte reverenciada com cautela. Um vasto cemitério, dos mais ricos da região, empareda o horizonte. As cruzes e as lápides sucumbem aqui à opulência dos mausoléus. Uma cidade silenciosa na toponímia, gótica nos telhados, pisos e jardins, e viva no bulício dos gatos e das pombas. Só os vivos aqui se mexem como mortos. Figuras paradas e cinzentas, cabisbaixas e de expressão dura como a estatuária.
Da janela tem-se uma vista privilegiada sobre esta cidade. Da janela está-se condenado a ver a morte atrás das grades.

20161118

Portel, Portugal

A mãe, monstruosa, fustigava sem dó nem tom a filha diminuta, uma polegadazita. Lançava-lhe em vagas desvairadas os impropérios que guardava de uma vida castigada. Reforçava esta formação ao rebento com encontrões secos do carrinho de bebé onde carregava um descuido de poucos meses. A menina, de outro mundo e outro tempo, arregalava os olhos com força para não perder a infância de vista. Os seus olhos eram de um azul-frágil e doíam-lhe muito, assim abertos. Por eles, de polpa tenra e cristalina, entravam as dores do crescimento.