20170314

Portel, Portugal

No tempo em que os animais falavam (os bichos, entenda-se, os irracionais... da zoologia, para que fique bem claro), nesses saudosos tempos idos, a franja emergente de humanos mantinha um silêncio incomodado. Ao recusarem-se terminantemente a emitir um grunhido que fosse, alargavam de dia para dia o fosso que os separava como espécie.
Muitas vezes, quando as tardes de domingo se apresentavam solarengas e não corria aragem de espécie alguma, os animais vinham sentar-se na berma do fosso a cavaquear sobre a vida e a observar as peculiaridades daqueles bichos mudos. Achavam imensa piada - e não há nada mais contagiante do que a gargalhada franca de um hipopótamo - ao gesticular nervoso daqueles seres pelados, às suas idas e vindas aparentemente desprovidas de sentido, aos amuos de costas voltadas e ao improvável equilíbrio nas patas traseiras. Um orangotango bonacheirão, que depenicava uma mão cheia de amendoins descascados, entalou-se de tal forma entre risadas que só um coice da zebra o fez cuspir para longe o lambuzado fruto seco. O amendoim galgou o fosso, desenhando um bonito rasto de saliva verde-viscoso, quase de cometa, indo aterrar aos pés de um humano que deambulava por ali. O humano olhou-o demoradamente. Conhecia bem a alcagoita, apreciava-a até. Um prazer trabalhoso... desenterrar e sacudir o ramalhete, passar agonias na seleção da melhor vagem dupla onde se espera encontrar dois grãos igualmente bojudos, quebrar o selo da casca e ficar com um cheiro a serapilheira nos dedos, esfarelar a pele morena que esconde a carne branca, e só aí, então sim, desfrutar do crocante. Agora, ali no chão, à mão de semear, brilhava um desses acepipes, pronto a comer. O humano apanhou-o lentamente, olhando em volta, e abocanhou-o com avidez. Enquanto mastigava de boca fechada, dignou-se a olhar para lá do fosso, para os animais. As criaturas selvagens estavam perfiladas em silêncio, estupefactas com este comportamento. O orangotango, numa perspectiva puramente experimental, cuspiu um segundo amendoim. O humano comprovou o teste e deu até um passo de aproximação ao fosso. Seguiu-se a zebra, nervosa com este momento histórico, que com uma fortíssima fungadela fez voar um punhado de grãos para o lado de lá. O humano apanhou-os quase todos. Quase todos, pois um segundo humano chegou-se à frente e surripiou-lhe alguns. "É característica da espécie!", explodiam os animais num frenesim, "Uma reação do coletivo consciente!", regozijavam-se mutuamente dando palmadinhas nos lombos. Assim delirantes, os animais correram a atestar bolsas marsupiais, corcovas, bochechas e afins com amendoins descascados e dispararam uma salva. A descarga varreu toda a extensão do fosso.
Os humanos, despertos do seu torpor sobranceiro, aproximaram-se. Alguns começaram a debicar os grãos espalhados pelo chão, deixando escapar uns cacarejos de prazer; um deles, sôfrego, teve até uma reação alérgica (inchou como um peru). Nessa ânsia devoradora esvoaçaram para o lado animal, em direção à fonte. Outros, perceberam que ao se destacarem com determinadas momices lhes calhava uma fatia maior. Macacada total, como seria de prever. E não satisfeitos com o maná, aproveitaram uns ramos de acácia bem posicionados, e balançaram-se eles também para o outro lado.
Um outro grupo de humanos, mais espevitado, viu ali uma oportunidade de ouro para criar uma fonte de rendimento estável de refeições grátis. Podiam até conjugar as horas de maior afluência com algumas atuações especiais e duplicar os proveitos; os elementos mais jovens eram particularmente apreciados e recompensados. E porquê ficarem-se pelos amendoins?
Enquanto assim congeminavam, acocorados em círculo, esfregavam as mãos empedernidas com tal soberba que estas soltavam faíscas de sílex. Como a savana estava no ponto, o fogo varreu a raça. Os animais, emudeceram.