20100425
Xcaret, Península do Iucatão, México
À primeira vista era indubitavelmente um armário. A prová-lo, as madeiras escuras de uma ex-colónia protegiam, em motivos arbóreos, o verde denso de um vidro que, martelado, nunca partia. Colossal, para um tamanho pequeno, assentava em quatro pés barrocos adornados a joanetes reluzentes. Adivinhavam-se prateleiras sóbrias e resistentes com algumas reservas em suportar pertences mais vulgares. Em suma, um receptáculo imóvel a cumprir funções.
Mas quem, como eu, conhecia bem o interior deste armário soturno de sala de estudo, punha muitas reservas a uma definição tão marceneira.
É que este armário, o da minha avó, tinha coisas do arco da velha. Senão vejam: aqui, um bode grisalho bebia de um balde campestre ao comando de uma alavanca de cobre sem nunca ficar saciado nem o balde vazio; ali perto, um burguês bonacheirão ressonava de consciência tranquila enquanto lhe iam despejando, à manivela, uma chusma de ratinhos pela goela abaixo; subindo uma prateleira, era comum encontrar Júlio Verne carregado de volumes, a empurrar a Mãe de Gorki contra o Sexus de Miller; poucos sabiam, mas havia um frasco, pudicamente escondido atrás de uma roda de cores giratória, que aguardava em estado líquido a evolução de um parente antigo; já cá em baixo, sepultada num gavetão, a urna do pintor Henrique Cardoso assentava numa pira de carvões e esfuminhos.
Uma tarde destas terminava, com regularidade, pela audição de 'Pappa con Pomodoro' de Rika Zarai, em riscos de vinil sobre gramofone portátil.
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