20210704

Cavadoude, Portugal

Já repararam naquelas pessoas que seguram o sorriso por mais tempo que o necessário? De tal forma que quando se cruzam com o transeunte seguinte assustam-no com uma fileira rasgada de dentes luzidios destinada ao anterior? Esqueçam. Encontrei um campeão. Um mastodonte de expressividade. Um guardião da longevidade bonacheirona. Este fenómeno, depois de um jocoso cumprimento matinal, consegue manter a frescura da bonomia por mais de 150 metros, enquanto aguarda o sinal verde na passadeira, espreita as notícias da montra da tabacaria e até durante o café (embora, diga-se em abono da verdade, muitas vezes lhe escorra um fiozinho de cafeína pelo canto da boca).

Lisboa, Portugal

Hoje, alertado por uma conversa cruzada sobre o meu Bacalhau à Brás, cheguei à triste conclusão de que não há nada que eu costume dizer. “Como eu costumo dizer”, diziam na mesa ao lado e, zás!, uma banalidade. Esta máxima de empoderamento que eleva o orador à categoria de citado, escapa-se-me. Dei voltas à cabeça, puxei pela dita, remoí a batata até a deixar em palha, e nada! Não me surge mesmo nada que eu costume dizer. Que terrível sensação de vazio. Que animal sem hábitos sou eu. A minha prestação numa qualquer conversa fica assim manca, efémera, sem um pilar de sabedoria onde se ancorar. Que maravilhoso e tranquilizador fecho de diálogo é ouvir “Como eu costumo dizer, cá se fazem, cá se pagam.”, ao qual respondemos com um sorriso benevolente e um imperceptível anuir de cabeça. É isto que congrega ouvintes; que junta magotes. Estarei então condenado ao discurso disperso, errático e mutante? Ao irremediável monólogo? Ãh…?

Vale Seco, Portugal




Ontem não fiquei em casa. Saí. Saí, não para me empanturrar da benesse que é estar em calamidade mas porque atualizar as vacinas do meu filho era assunto emergente.

Vivo como um finado há tantas semanas que a cidade não me reconheceu a expressão fechada. Pela rua eram todos figurantes apressados, irrelevantes ao argumento. 

Vagueei um pouco por este desanimado filme de Miyazaki, com crianças a brincar às caras escondidas com a natural adaptabilidade que lhes é inata. Vi gente afastada, ciosa da sua área protegida, vi jovens de riso nervoso, e vi gente com máscaras puxadas ao queixo, como um capacete de motorizada displicentemente pousado na testa. 

Torna-se difícil respirar, fazer chegar aos pulmões algum ar livre de informação insidiosa. Se é um conspirador vampiro-asiático, bicho-papão, se um comité formado por baleias revoltadas e cisnes desocupados, um soluço cósmico ou puxão de orelhas divino, o certo é que a lixívia esgotou e todos os dias perdemos momentos únicos e ganhamos dores que se vão repetir ainda por muito tempo. 

No regresso a casa senti que a nortada fria me apressava a chegada à casamata. E, curioso, dei por mim a evitar pisar uma máscara desprotegida, caída no chão; não sei se por receio de contágio se por respeito a quem nela confiou a vida.