20090529

Kairouan, Tunísia Entrei descalço. Enrolado na cintura, um pano longo, usado por muitos, disfarçava a falta de fé. O chão, morno e bafiento, dava aos passos um silêncio desconfortável. Rapidamente fui levado por pátios curtos e lanços de escadas sem degraus enquanto era impudicamente envolvido por tecidos húmidos em busca de calor. A nossa passagem era displicentemente seguida por olhares que cumpriam tarefas. Caminhamos assim por quatorze dias e dezasseis noites. Violentamente fui empurrado por uma pesada porta ornamentada e caí de joelhos no interior de uma sala asfixiante. A toda a volta centenas de milhares de sapatos erguiam-se em paredes desconcertantes. O próprio tecto era uma teia de sandálias penduradas em cordões de pele. O cheiro a animal era profundo. Tinha chegado ao meu destino. Só me perguntava como iria sair dali calçado.

20090526

Tamerza, Tunísia O projeccionista estava prestes a ficar sem a sua última pinga de sangue. Aquela gota preciosa tinha-a ele guardado para um momento especial. Mas agora era inevitável. Ia perdê-la. Desesperado, desatou a comer os doces mais escandalosos numa tentativa de entupir as poucas artérias ainda em funcionamento e assim não deixar escapar os preciosos glóbulos. Ao mesmo tempo, envolveu-se em película aderente de marca branca dos pés à cabeça. Quando o filme teve o seu clímax mórbido, o projeccionista já se encontrava no chão sufocado pelo seu próprio vómito de açucares.

20090516

Matmata (Tatooine), Tunísia A longa coluna de grafismos deixava para trás um rasto de pictogramas indecifrável no lay-out agreste da paisagem. Pelo caminho, alguns símbolos mais antigos e uma ou outra marca menos eficaz deixavam-se ficar, agonizantes, orgulhosamente à espera da perda total de reconhecimento. Fontes completamente secas exibiam os seus corpos ilegíveis numa tentativa fútil de acompanhar a pouca sinalética ainda em condições de fazer algum sentido. Ao acaso destacavam-se alguns 'highlights' completamente datados que murmuravam, sem nexo, promoções antigas. Mais afastados, numa elevação do terreno, um pequeno grupo de logotipos rezava em silêncio por um 'restyling'.

20090512

Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Brasil O administrador tomou as competências e, uma vez mais, analisou-as em profundidade. Considerou todas as valências dos pressupostos envolvidos e colocou, da melhor forma, os parâmetros de confidencialidade na mesa ao mesmo tempo que validava a dinâmica adequada para tornar o processo mais expedito. Implementados a montante os procedimentos iniciais preparou-se para agendar uma análise posterior mais detalhada. Subitamente ouviu o seu nome gritado em altos berros. Num ápice, largou a fantasia corporativa e correu a lanchar o seu pãozinho com Tulicreme.

Arraial d'Ajuda, Brasil

Lemuel Gulliver devia ser extremamente baixo. Quem passava por ele nas margens do Liffey frequentemente lhe pontapeava as orelhas por distracção. No entanto, nunca nada disto foi documentado podendo mesmo ser atribuído a intrigas de gente muito baixa. Inquestionável é que Lemuel sofria de uma surdez incomodativa e alguém tinha de tentar explicar isso.

20090510

Sepilok, Bornéu, Malásia - Tento evitar o contacto visual sempre que possível. É só para arranjar chatices. Já tocaram numa córnea gelatinosa de alguém com os dedos cheios de migalhas? Ou mesmo sentir uma pupila cheia de lágrimas com mãos de mudar o óleo do carro? É perfeitamente dispensável. Os óculos nunca foram solução. Quando em contacto aleijam a cana do nariz, deformam as orelhas e muitas vezes partem, enfiando pedaços cheios de dioptrias pelos cristalinos adentro, contaminando o humor vítreo e obrigando a intervenções cirúrgicas dispendiosas. Ando seriamente a pensar em comprar umas luvas de camurça com forro em pied de poule.
Florença, Itália Era uma vez um homem só, que vivia num país cheio de uma língua muito distante da sua. A toda a volta encostavam-se muros apertados que coavam as vozes da sua terra. Mesmo as suas memórias gritavam cada vez mais baixo, de tão mudas. O homem só, gasto de tanto silêncio, deixou de ouvir. E de falar. Foi então que, a meio de um gesto, deixou de se ver. E ficou ali, vazio, mão estendida.

20090504

São Miguel, Açores Guernica, segundo Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco y Bahamonde Salgado Pardo de Andrade.

20090501


Bangkok, Tailândia

Farto de ouvir os males do mundo, o ser divino fez ouvidos de mercador. Em seguida escolheu um par de orelhas a condizer, estilo agiota, e olhou-se ao espelho. Mas, etéreo como era, nenhuma imagem foi reflectida.