20170223

Pico Ruivo, Madeira, Portugal

A moldava muda gritou um sinal da cruz ao ver o cartaz esvair-se pela rua fora. Violentamente arrancado pelos cantos, ainda se lia no gatafunho voador: "Desistam, o fim do mundo está demasiado próximo!". Tal manifesto, empunhado por um redemoinho de vento zombeteiro, deixava para trás um rasto de gente irritada. Gente que sempre desprezara tranquilamente os 'Arrependam-se!' mas que agora se sentia estranhamente incomodada com este 'Desistam'. Até o empregado de balcão da confeitaria, que estava cá fora a varejar o toldo empoçado com um toco de vassoura, ficou de tal modo furioso que nem se reconheceu (pelo reflexo na montra pensou que estava um tipo rancoroso a furar o toldo com uma caçadeira). Que desplante o daquele panfleto! Assumir a fraqueza humana assim, sem cerimónias. Imprimir-se como um arauto do comodismo das gentes; logo ele, ou melhor, aquilo, que não é mais do que de um papel de fraca qualidade, um reciclado de pastas conspurcadas, um purgatório de almas mortas sem valor...
Mas foi como se o gume da folha voadora tivesse deixado cortes finos em todos os dedos de todas aquelas pessoas. Uma dolorosa ardência, uma incomodativa persistência, moía fina e espicaçava o orgulho. Enquanto doía, por teimosia, ninguém desistiu.

20170203


Viana, Portugal

Há muitos, muitos anos avolumados em décadas, ordeiramente arrumados por séculos. Mas são muito poucos os que resistem ao empilhar dos milénios. Cada tempo que chega verga um pouco mais os ombros dos mais antigos até tudo não passar de uma imensa resma de gramagem fina. Depois chegam irritantes bactérias miudinhas que se agarram à pedante nomenclatura em latim para roer tudo numa mastigação persistente, passando eras inteiras a montes de excremento em pó. Montes de tempo perdido. Quase irrecuperável, não fossem os abraços, esses engenhosos enlaces.
Um abraço é uma coisa difícil de executar. Requer conhecimentos de coreografia cultural, para ser dançado na perfeição. Precisa de ser sentido para ser dado (apesar do que dizem certos cartazes gratuitos). Até um abraço de urso é profundamente humano. Abraçar é um momento de intensa vulnerabilidade. Num abraço bem dado dá-se uma larga exposição frontal e dão-se as costas à pancada forte. Oferece-se a jugular e a confiança. Demora tanto a decidir dá-lo como a soltá-lo (muitas vezes só com a infiltração de um pranto). Abraçar é vestir-se do outro, por instantes.
Mas abraçar a frio é como uma repulsa. Algo assim entre a vénia distante e o político em campanha. Não se consegue abraçar com a distância pelo meio. Não se dá um abraço num corpo de texto. Na lisura digital os dedos não sentem os ossos peculiares. O queixo não descansa num ombro amigo. É humanamente impossível 'mandar' um abraço. Não é coisa que se diga.
Dentro de um abraço o tempo pára, ajeita-se e fica ali, seguro.