20110130

Petra, Jordânia Como a porta da rua estava aberta, a de lá de cima bateu com um tal estrondo que até as varejas guinaram. Pendurada num fio de cediela, a máscara africana do riso estremeceu contra o vidro. O soalho de carvalho francês despertou e espreguiçou-se, estalando os nozinhos com violência. Ou as suas traves roçavam o solo do quintal, ou os torrões deste se afoitaram pela sala adentro. O certo é que na fronteira, ninguém sabia de que terra era. Pela sala esvoaçavam já sombras de limoeiro, de tangerinas e até de pacíficos galhos de oliveira. Manchas de humidade decoravam os lacados em pastéis de fungo. Sentia-se uma saudade do bosque, nas madeiras, e nas plantas, um espírito libertador. Nas águas de cima, o sótão estava com a telha em desalinho, de tão ventoso que estava, e a cave, se existisse aqui tal subterfúgio, estaria exactamente ao contrário. Uma casa abandonada, se quiséssemos ser indelicados para o bando de pombas que tão carinhosamente atapetavam o soalho com os seus excrementos. E que dizer daquele quarto em que a porta não abria? Que peso morto era aquele que fincava o pé a menos de uma frincha? A porta da rua encolheu as ombreiras e deixou-se ficar a arejar, rangendo de satisfação.

20110120

S21, Phnom Penh, Cambodja O apêndice é vermiforme, coitado. E do seu ponto de vista, está tudo virado do avesso. Posto isto, resta dizer que, dada a proximidade fecal, nem um suspiro profundo de consternação lhe é permitido. Em revolta muitos dirão "Que sofrimento atroz lhe deve remoer as entranhas!". Mas isto é não conhecer o tipo. Sofrer é um luxo a que não se pode dar. Ao primeiro queixume, movem-se diligências, abrem-se incisões de precisão cirúrgica e o apêndice, adereço, anexo, suplemento, acrescento, acessório, complemento, aditamento, é retirado. Assim, sem mais nem porquê.

20110115

Beng Mealea, Cambodja A funcionária dos correios adorava aquele jogo solitário de encontrar um par. Jogava-o com qualquer um, insinuando-se o convite. Que bela que era, na tranquila eficácia com que ponderava as suas opções. Por mais agreste e ignota que fosse a terra, no sorriso escondido víamos-lhe a manha de saber das coisas. Só e sem medo, batia a esta e àquela porta até encontrar quem fizesse pandam. Na sua busca era altruísta. Parecia um misto de chefe de bando e casamenteira, com a voz clara a arrebanhar e casar os que ficavam pelo caminho. Velocista no passo, fazia o seu jogo sem pressas. Sabia que o chegar à alma gémea acabava com tudo e, por isso, fazia de conta que se enganava. No fim, Rosa enterrava sempre as duas últimas cartas no meio do baralho, sem as virar. Sem fazer o último par. A vida era-lhe demasiado preciosa para terminar.