20090729


Kata Tjuta, Austrália

Desde muito novo que Joseba se habituara à ideia de ter um corvo pousado no ombro. Durante o dia o pássaro pouco o incomodava. Mantinha-se discretamente empoleirado a olhar fixamente para o interior da sua orelha com um ar reprovador. À noite, mal Joseba adormecia de barriga para baixo, a ave negra mudava-se para o topo da sua omoplata, aproximava o bico aguçado da orelha sonolenta e soltava um excruciante crocito. Desde muito novo que Joseba passava as noites em claro desespero.
Uma noite, mais colérico do que nunca, o corvo aproximou demasiado o bico e furou-lhe o tímpano, ensanguentando a fronha. Desorientado e enjoado, Joseba regurgitou, um a um, todos os filhotes de corvo que tinha comido ao longo dos anos.

20090726

Uluru, Austrália À trinta e nove anos que Macquaire-Hage, actor antropólogo, procura os restos imortais de Deus. Na década de 80 iludiu-se com umas ovas de esturjão fossilizadas que viriam, mais tarde, a ser atribuídas a uma ceia tardia de Siddhartha Gautama. Já nos anos 90 ficou conhecido pela descoberta das famosas sementes petrificadas de Rambutan, desenterradas no deserto Núbio do Sudão, posteriormente identificadas, com grande pesar, como parte de uma merenda de viagem de Ibn Battuta. Entretanto, na vida real, Macquaire-Hage vive num mundo imaginário.

20090725

Sidney, Austrália Às nove da manhã o investigador privado apresentou-se - Venho da parte da tarde - disse, com a segurança de quem tem as costas quentes. A mulher pública, pouco impressionada com a temperatura das suas espaldas, retorquiu - Logo à tardinha irei receber um colega seu que vem da parte da manhã, o que me parece ser uma recomendação bastante mais adequada a este caso. Agastado, o investigador privado nacionalizou-se.

20090721

Barca d'Alva, Portugal

Educadamente, Paulino pegou numa palavra, uma das mais pequenas, e mordiscou-lhe a pontinha, uma vogal rechonchuda e sumarenta. Pelo canto da boca escorreu-lhe um fio de acentos que rapidamente lambeu.
- Nada mau. – pensou, enquanto cobiçava um pratinho de versículos conventuais.
À terceira lengalenga enfarinhada sentiu um pouco de bílis a vir-lhe à boca. Sôfrego, ainda arriscou umas quantas citações quentes com molho de verborreia. Nem teve tempo de chegar à casa de banho; vomitou no meio da sala uma notícia 'cor-de-rosa'.
Sidney, Austrália No aviso lia-se: "Por favor sintam a relva debaixo dos vossos pés, abracem as árvores e afaguem as flores, deixem o musgo das pedras quentes fazerem-vos cócegas no nariz e, acima de tudo, sujem-se de verde." Isto deixou-me de pé atrás, não era coisa de gente séria. Resolutamente lancei o outro pé também para trás e caí na relva a rir como um perdido.

20090720

Tóquio, Japão (foto Rute Lucas) O purgatório de Jingu Bashi era muito bem frequentado. Os seus estádios de purificação eram dos mais conceituados e davam acesso garantido ao paraíso de Meiji Jingu. As almas aí presentes, depois de muito bem lavadas com soda cáustica eram postas a secar ao sol nascente e posteriormente passadas a pente fino adquirindo assim aquele aspecto desfrisado celestial. E não se pense que era utilizado um qualquer pente de fancaria ou desfrisador mecânico em tão ilustre tarefa. Apenas uma selecção criteriosa de conchas de choco Sepia Officinalis era utilizada na confecção destes penteadores, minuciosamente trabalhados em finos dentes. As almas, assim fluídas, eram tomadas por redemoinhos de bons ventos e enviadas para os organismos competentes para certificação.

20090717

Hakonen, Japão Andei à sua volta deixando, curioso, que os meus dedos toquem a sua pele negra. Confiei-lhe tudo. Partimos juntos. Agora passa por mim, provocadora e trocista, uma, outra e outra vez, tão desalinhada pelas cambalhotas dadas que não a reconheço. Desesperado, eu só quero é a mala.

20090714

Porto, Portugal Acordou mudo de um pesadelo mudo com a boca cheia de gritos. Aos pés da cama, o gato sorria com a (sua) língua ainda de fora.

20090713

Matosinhos, Portugal

A vaga de calor galgou os dois lanços de escadas e entrou, deixando todos encharcados em suor. O ar, acorrentado, tornou-se pegajoso e mal-disposto. Um a um, caíram como tordos. Lá fora, os tordos caíam como gente grande. As ventoinhas olhavam de um lado para o outro, desesperadas. O corpo dos bombeiros jazia imóvel no chão.

20090712

Sardenha, Itália Numa das suas típicas caminhadas pós-almoço domingueiro o funcionário público teve uma epifania, mais literária que religiosa, que lhe provocou um calafrio. Assim sem mais nem menos teve consciência de que cada um dos seus passos era mecanicamente repetido, simétrica e alternadamente. O mesmo movimento passo após passo, passeio após passeio, mantinha-o, á vários anos, numa monótona linha recta de pensamento. Chorou convulsivamente durante sete passos mais e, antes de repetir o oitavo, tomou a decisão que iria mudar por completo a sua vida: a partir do seu próximo passo iria ser a pessoa mais assimétrica a caminhar à face da terra; todo ele seria um modelo de desequilíbrio. Daí em diante só caminhava apoiado em partes do corpo alternadas, pé, joelho, orelha, omoplata, e por aí em diante. E não se ficou pelo andar. Começou a nadar contra a corrente, a comer com os olhos, a falar pelos cotovelos e a pensar com a barriga. Sentia-se completamente diferente de tudo e de todos. Feliz. Inexplicavelmente, quando chegou à repartição onde trabalhava, vestido com uma salada de arenque e tampas de corrector e se sentou no arquivo morto para começar o seu dia a enrolar fita-cola de dupla face, o único comentário que ouviu dos seus colegas foi devastador: "És sempre o mesmo!"

20090709

Masai Mara, Quénia - Raio de azar, - murmurou entre dentes quando percebeu que aquela ia ser a sua última ceia - nunca mais marco mesa para 13.

20090705

Lençóis, Chapada Diamantina, Brasil A noite sentia-se particularmente contrariada. Como se não bastasse a pouca imparcialidade em chamar 'dia' às 24 horas que compunham os iguais períodos de luz e escuridão, as horas preciosas em que impunha o seu domínio eram cada vez mais esventradas por desrespeitadoras luzes construídas. E ainda por cima chamavam-lhe a si, noite profunda, 'ausência de luz'. Como se não tivesse conquistado por mérito próprio, o direito ao seu nome: noite. Não saberiam todos que a luz é meramente um conjunto mínimo de acidentes pontuais no imenso manto de breu que é o universo infinito? Ausência de noite, é o que a luz é. Pequenos laivos de bondade nocturna, ocasionais aberturas de pálpebras. E continuou nisto toda a noite, a noite, de tão ressabiada que se sentia. Pouco depois, cansada, acordou.
Masai Mara, Quénia

Ole Odhiambo seguia, satisfeito da vida, pedalando na sua velha bicicleta de ferro. Estava só, como gostava de estar quando pedalava, e o sol generoso revia-se no seu manto carmim. Era algo digno de se ver, aquele homem que rasgava o silêncio da savana com o seu enorme sorriso. Seria pela curva demasiado apertada ou pelo excesso de confiança e velocidade, o que é certo é que aconteceu o que descrevemos a seguir.
Um solitário e descomunal elefante africano macho abanava as orelhas com impaciência bem no meio do trilho. Agastado, encontrava-se em plena época de cio sem uma única fêmea nas redondezas. A colisão era inevitável, mesmo que ainda tivesse travões. Ole Odhiambo saltou do selim, lançando-se nos braços de uma acácia. A velha bicicleta de ferro não teve a mesma sorte. O elefante, violentamente abalroado, ficou perdidamente apaixonado pelo velocípede (que sabemos ser 'de senhora') e desapareceu com ele pela vegetação. Ainda hoje as fogueiras ouvem histórias do elefante e da sua bicicleta.
Ole Odhiambo faz agora o trajecto de 12 quilómetros entre a sua aldeia e o eco-resort de luxo onde trabalha, a pé.
Esta história aconteceu mesmo, ainda que possa não ter sido exactamente assim.