20120426

Marraquexe, Marrocos

Basta fé, e a pele sobre os ossos, ou em pele e osso, só resta a fé?
Uma janela de topo pontiagudo, que lembra balas e supositórios, aponta o céu. E as grades maravilhosamente trabalhadas que a ornamentam, quem prendem? Refugiem-se lá, pois quanto mais os rebentamentos surdos estilhaçam os vitrais, mais a luz dança no interior.
Cá fora, uns deixam os sapatos, outros a pele de lobo.
Lá dentro está tudo escrito.

20120425

Barcelona, Espanha

Um gato reflete-se numa poça. A poça estremece, consciente da sua própria profundidade. O gato vê-se a tremer e toma consciência de que é apenas uma representação, um ato de uma boa peça. Toda a cena está a ser vista por um cego, que sentiu o cheiro a urina.
Uma parede áspera trespassa dolorosamente o gato, explicando-lhe que faz aquilo por piedade. O gato agradece, em silêncio, ser poupado a ver a sua decomposição.
A poça é agora um pórtico trabalhado e o gato uma mancha de pelo no chão. Caravanas de piedosos cruzam diariamente aquele tapete gasto, vindos do deserto. Mas o calor é tanto que o pórtico escorre, seca e desaparece, deixando todos muito confusos. Cegos pelo sol, olham o chão e vêm-no em pé, com um gato a urinar. A poça morna onde estão deitados, engole-os, ligeira.
O cego, satisfeito por ter assistido a tal momento, lambe demoradamente uma das patas, depois a outra, e vira costas ao espelho, ronronando de superioridade.

20120402

Barcelona, Espanha Passou a verde e a madura. O apetite surgiu com o provar de outras palavras que, num turbilhão, lhe subiram à cabeça caída. Tinha começado como um formigueirozinho de abstinência - estava limpo há vários dias - e logo cresceu para uma castanhola de dentadas, daquelas que nem mastigam e castigam, nos anos delicados que se aproximam, um estômago surpreendido. Esquecera por completo aquele branco agudo que acamava arabescos em filas indianas. Amoroso, lambeu-lhe os cantos, um a um, com um afago. Com doçura, massajou-lhe a crescente sucessão de lombas, como se esperasse um filho. Então, fingindo adormecer, deixou o livro deslizar pelo colo abaixo, contornar com volúpia a curva roliça do sofá, aninhar-se sob a camilha. Livre do peso da literatura, começou a escrever, ele próprio, na manta de carneira que lhe cobria as pernas esticadas, o que de mais profundo lhe passava pela cabeça. As escritas mergulhavam no pêlo espesso, rasgando os redemoinhos felpudos em segredo, para logo voltarem à tona num resfolegar de Hás! e Hús!, deixando ideias soltas espumarem-se ao acaso. A pouco e pouco as pernas foram-se cobrindo de um bando de coisas sem nexo, que por vezes - céus! - transbordavam pelos estofos fora indo bater com força nas fronhas bordadas. Felizmente, algo lá no alto fez rebentar um vaso de tinta negra, espalhando um manto de quietude e recato sobre todas aquelas vergonhas. A maravilhosa mancha do inesperado, pacificou, enfim, as populações de gatafunhos que escorriam de algo seco, duramente torcido.