20101016

Jerash, Jordânia Olhando para trás, Huggo Verdú viu a vida a afastar-se a passos tão largos quanto o caminhar às arrecuas permite. Enxofrada, sem um aceno, ia de queixo tão levantado que deitava um olho para trás das costas. Huggo Verdú, chamemos-lhe agora, carinhosamente, Pangolim, arrastava-se cabisbaixo, com a língua pendente, por onde escorria uma delicada filigrana de saliva. Não fossem as saborosas formigas a distraí-lo com os seus estruturados percursos e desorientadas manifestações de pânico, tinha com certeza reparado mais cedo naquilo que, anos mais tarde, descreveria nas longas tainadas de inverno como "A minha salvação!". (estamos aqui a ser tremendamente injustos com os apetitosos insectos, prováveis causadores da epifania de Pangolim) Ora, o que o nosso desditoso caminhante descobriu, foi exactamente isso em que estão a pensar: a sua própria sombra. (os que imaginavam aqui o displicente lenço de cambraia, finamente bordado a ocre e sanguínea, certamente vão abandonar a leitura, melindrados) - Como poderei alguma vez ter sentido tristeza em mim, quando arrastava esta pobre alma negra, como um algoz, forçando-a a copiar-me as vergonhas, esmigalhando-lhe os pés e escondendo-a da luz. Como posso ter vivido de cabeça baixa, e ainda assim altaneiro a este meu mapa de desgraça. Vivi sobre a imagem da minha morte, e não a respeitei. - declamou Huggo, o Pangolim, amante de monólogos e amador de teatro. Cuidadosamente, descolou a sombra já puída das solas enrugadas, deu-lhe duas sacudidelas respeitosas, endireitou as costas e sentou-a às cavalitas. A sombra agarrou-lhe os cabelos e ele, Huggo Verdú, com um relincho de satisfação, partiu à desfilada. O desencarnado Pangolim, perplexo e abandonado, deu meia volta e seguiu na peugada da vida a que estava habituado.

20101011

Petra, Jordânia Anson, o gato que atravessa paredes, pouco se importa com um mundo feito de biombos, como este. Não por ser um bicho etéreo, mas sim porque as frinchas de horizonte não lhe despertam interesse nenhum. Eu cá já não sou assim. Cansa-me o andar de centopeia, não suporto o contra-picado e abomino as cenouras. Vou-me aos socalcos, montesino, e arfo até ao promontório seguinte. Acima de mim, nada! Um destes dias acordei deitado e tive consciência das camadas de coisas que se amontoam sobre a minha cabeça. O coração disparou e um cheiro a pólvora seca forrou-me os pulmões. Levantei-me de um salto, galguei os dois lanços de escadas, subi a credência e icei-me, pela clarabóia do tecto, para o forro do telhado. Com apenas uma fina camada de telha francesa sobre mim, a pulsação baixou consideravelmente. Para subir à cumeeira desloquei 3 telhas e uma omoplata. Demónios! No céu, zombeteiras, nuvens densas empilhavam-se, num tecto baixo. De cabeça perdida, lancei-me pela chaminé acima, patinhando a parabólica até me enlaçar despudoradamente no galo forjado do cata-vento. Depois, lembro-me apenas de uma forte rabanada de vento fazer girar a seta do norte de tal forma que o sul me atingiu em cheio na cana do nariz. Estava prestes a ficar com um daqueles maus humores que duram a tarde inteira, quando comecei a subir com uma facilidade estonteante. Vi a minha ridícula figura montada no galispo do telhado, a casa, o quarteirão todo, os arredores e até as curvas disparatadas do rio. Ah, a felicidade. Estava mais vivo do que nunca.

20101007

Petra, Jordânia O mar morto estava cheio de vida. Viam-se línguas à solta arregalando os olhos muito devagar. As lágrimas salgadas são doces de alívio. Não se pode culpar um mar por se sentir picante ante tantos corpos nus. E todos querem sentir o milagre. À tona, parecem pessoas, no fundo, cai negra a pele morta. Morto de sede, o mar mirra. Do outro lado também há lágrimas.