20101016
Jerash, Jordânia
Olhando para trás, Huggo Verdú viu a vida a afastar-se a passos tão largos quanto o caminhar às arrecuas permite. Enxofrada, sem um aceno, ia de queixo tão levantado que deitava um olho para trás das costas. Huggo Verdú, chamemos-lhe agora, carinhosamente, Pangolim, arrastava-se cabisbaixo, com a língua pendente, por onde escorria uma delicada filigrana de saliva.
Não fossem as saborosas formigas a distraí-lo com os seus estruturados percursos e desorientadas manifestações de pânico, tinha com certeza reparado mais cedo naquilo que, anos mais tarde, descreveria nas longas tainadas de inverno como "A minha salvação!". (estamos aqui a ser tremendamente injustos com os apetitosos insectos, prováveis causadores da epifania de Pangolim)
Ora, o que o nosso desditoso caminhante descobriu, foi exactamente isso em que estão a pensar: a sua própria sombra. (os que imaginavam aqui o displicente lenço de cambraia, finamente bordado a ocre e sanguínea, certamente vão abandonar a leitura, melindrados)
- Como poderei alguma vez ter sentido tristeza em mim, quando arrastava esta pobre alma negra, como um algoz, forçando-a a copiar-me as vergonhas, esmigalhando-lhe os pés e escondendo-a da luz. Como posso ter vivido de cabeça baixa, e ainda assim altaneiro a este meu mapa de desgraça. Vivi sobre a imagem da minha morte, e não a respeitei. - declamou Huggo, o Pangolim, amante de monólogos e amador de teatro.
Cuidadosamente, descolou a sombra já puída das solas enrugadas, deu-lhe duas sacudidelas respeitosas, endireitou as costas e sentou-a às cavalitas. A sombra agarrou-lhe os cabelos e ele, Huggo Verdú, com um relincho de satisfação, partiu à desfilada. O desencarnado Pangolim, perplexo e abandonado, deu meia volta e seguiu na peugada da vida a que estava habituado.
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