20170630

Regoufe, Portugal

Há uma espécie desconhecida de pulgas que constitui, por si só, um dos fenómenos mais desconcertantes do reino animal. Já de si diminutos, esta família muito particular de pulicídeos desenvolveu uma atrofia muscular dos quartos traseiros que originou a redução de um terço do seu tamanho, conforme publicado em ‘pulica nannus’, de Cromwell. Segundo o obscuro entomologista, esta mutação da pulga-anã ou pulga-do-fio, como é vulgarmente denominada, resulta da sua adaptação ao meio onde sobrevive, os gumes inóspitos abandonados, locais metálicos e afiados. Constatou o insigne investigador, pela observação de lacerações profundas em carcaças fossilizadas, que as primeiras espécies de pulga comum que tentaram habitar estes locais perigosíssimos sofreram duros golpes ao saltar sobre o afiado das lâminas. As que não pereciam, esquartejadas de imediato, sofriam cortes nos tendões de impulsão sendo a partir daí obrigadas a rastejar lentamente, originando o princípio da atrofia que conhecemos hoje. É curioso notar no exemplar atual da pulga-anã a deformação em forma de vinco interno nas placas do abdómen - que se tornaram duríssimas - revelador de duas funções primordiais no seu curto ciclo de vida: protegê-la do corte enquanto se arrasta pelo gume, e mantê-la equilibrada como num carril.
A vida periclitante não é fácil para a pulga-anã. Deslocando-se normalmente em linhas de grupos familiares é um momento extraordinário observar o cruzamento destes grupos no gume. Sendo uma sociedade matriarcal as duas fêmeas que encabeçam cada linha entabulam um elaborado diálogo de filamentos para poderem perceber qual é o grupo mais pequeno e assim o que se irá submeter à passagem, um arriscado processo que consiste no seguinte: o grupo submisso encaixa bem o fio da lâmina no vinco do abdómen e crava as patas em ambos os lados do metal liso, mantendo-se imóvel como grampos. O grupo maior inicia então a difícil tarefa de transpor esse perfil tão irregular sem a guia segura do gume. No entanto, algo de extraordinário acontece aqui. Cada uma das pulgas-anã imóveis começa a vibrar a sua estrutura costal eriçando-a em vinco saliente, criando assim um simulacro de gume para assistir à passagem dos seus congéneres.
A comunidade científica esvai-se em questões. O que terá levado estes ínfimos seres a viver no fio da navalha? A prescindir da sua liberdade de salto para se fixarem num caminho tão penoso?
Que fantástico se tudo isto fosse conhecido, um dia!

20170608

Porto, Portugal
Até os heróis morrem, um dia. Tal como os banais. Mas estes morrem mil dias. Antes do seu, vão morrendo em cada dia que morre cada um dos seus heróis. Claro que não é sempre assim, nos primeiros anos as pessoas só crescem, é a vida tranquila a dar um mote perverso. Depois começa gente a morrer. É o aviso da chegada do envelhecimento (se ninguém morresse, ninguém morria). Os banais vão assim pagando o preço de dar abnegadamente aos seus heróis um pedaço de si: ficam sem ele.
Quanto à forma, contrariamente ao sussurrado pelos corredores, só há uma, de morrer, que é viver até lá. Um processo cheio de sobressaltos, diga-se. Um insistente encadear de manguitos a um desígnio inexorável. As garras gastam-se de tanto esgadanhar o vazio. Uma existência heróica, a dos banais.
Os heróis, esses, morrem em explosões solares.