20111022

Barcelona, Espanha A fulana tinha traços de boneco; meia desengonçada, meia desengraçada. Ensinava animação e, embora não tivesse umas unhas dignas de nota, tinha dentes. Olá se os tinha; e que dentes. Uns dentes que merecem um parágrafo. Imaginem uma paliçada de marfim capaz de travar os elefantes de Aníbal; tentem abarcar o mais imponente dos glaciares árticos e, ainda assim, serão modestos nos vossos esforços. Os que a escutavam, entreolhavam-se, baralhados, pois nenhuma palavra escapulia daquela masmorra. Esticavam as cervicais, faziam concha com as mãos nas orelhas, mas tudo em vão. Rien de rien, como se diz lá fora. Foi então que algo sucedeu. E o facto de tal coisa ter sucedido, só prova que os momentos de expectativa estão destinados a anteceder grandes surpresas. A generosa fileira de dentes brancos, assim sem mais nem porquê, começou a dançar uma sardana. Os incisivos deram o mote, apontando um pezinho saltitante. Os molares, entusiasmados, acotovelaram os caninos para se fechar o círculo. Em três tempos, todos davam as mãos, numa roda festiva. Até os mais sisos. A boca da fulana parecia uma praceta. Quem lhe vinha, cabisbaixo, pelas escuras ruelas do esófago, ficava deslumbrado com a luz boémia daquele momento e juntava-se à animação.