20160727

Barcelona, Espanha

A respeitável casa da esquina tinha a esquina em pedra boleada. Quebrando assim a aresta viva dava um ar gentil, uma ajuda ao esforço de dobrar o gaveto pousando um braço amigo sobre os ombros de quem passava. A casa era carinhosamente conhecida na vizinhança como a 'casa das muitas moças' pelo encavalitar de gaiatas sorridentes - não menos do que oito irmãs - emolduradas pela fresca cantaria das janelas do primeiro andar.
Conta-se que num fim de tarde outonal, daqueles em que se sente o esforço da brisa a puxar a chuva, as oito irmãs quase deslocaram os peitoris de ferro forjado tal foi a gargalhada que as atravessou de rompante. Deu-se o caso de por ali passar uma santa senhora, de seu curioso nome Miclicoxcletscluz, mulher dada e alegre mas muito atreita a padecer de secura da garganta. Amiga sincera do néctar espirituoso, fermentava essa relação com assiduidade. Foi num desses momentos de comunhão, envolta numa aura de vapores etílicos, que tentou dobrar a esquina da casa das muitas moças. Ora se a linha reta já é um desafio aos humores toldados da meia idade, uma tal inflexão do passeio torna-se um caso de violência. A senhora, que trazia a parede como muleta, vê este apoio fugir-lhe a 90 graus deixando-a à deriva na corrente de ar. Assustada, emudeceu. Sentia o chão a oscilar lentamente, como uma ponte pênsil. O braço de apoio tateava o ar como um mimo enquanto o arco das pernas periclitava na corda bamba. Prevendo a tragédia, persignou-se e em grande desespero clamou: "Ai, carago... é do bento... que eu caio!". O baque do gargalhar das moças fez o resto.