20100530

Key Largo, Florida, EUA "É tão grande que podia bem encher-se de importância.", comentava uma senhora sentada. Alheio a isto, um penhorista, cheio de cautelas, tem a infelicidade de entrar com o pé esquerdo num charco de águas paradas, pisando os bigodes a um barbo. De imediato desfaz-se em desculpas, que ficam a boiar, espalhadas. O peixe, que pela sua natureza não pode evitar de engolir todas aquelas migalhas suculentas à tona d'água, atribui algum exagero à reacção do penhorista, mas o bigode dorido toma o partido contrário. Um velho, estranhamente parecido com um assessor de colégio, finge-se atento a um enorme Metrosídero, aborrecido por o terem feito meter o nariz nesta história. Curiosamente, todas estas coisas aparentemente soltas, têm um fio condutor. Não precisamos todos de umas palavras de salvação?

20100517

Uluru, Austrália E, numa pirueta, rebentaram-lhe as águas; um grupo de laureados que ali passava, aplaudiu com ruidosas gargalhadas. O batoque escuro, penteado a cascatas, recortava-se no terreno a golpes de canivete. A coisa ia ganhando forma e o público descalçava-se de admiração. Um funcionário zeloso, recolhia os atacadores numa bobine larga, unindo-os com nós tão pequenos que ia ser o cabo dos trabalhos para os desatar. Nisto, uma gralha listada desceu sobre a bobine, jurando a pés juntos avistar a mais fabulosa reunião de minhocas que jamais tinha tido o prazer de picar sobre. Fazemos aqui um parêntesis para confirmar aquilo que todos já suspeitavam: o desfocado pássaro enrodilhou-se nos cordões, desconfigurando a bobine; o funcionário, esse, foi conduzido à loucura, com indicações para nunca mais ter a indelicadeza de regressar.

20100505

Milford Road, Nova Zelândia (foto Rute Lucas) A criatura foi de uma delicadeza extrema. Quem a observasse com alguma frieza, sentiria nela aquele embaraço, que muitas vezes se sente, quando, por exemplo, espalmamos uma centopeia que entra no meio do texto no momento em que encerrávamos a obra com violência, possivelmente irritados pela falta de concentração necessária para usufruir daquele momento irrepetível. No entanto, a maioria dos embarcadiços segue atentamente a viagem do guarda-chuva, indiferentes ao facto de que, se ele se encontra fechado, não protege da secura e, se aberto, impede a vista de desatar a voar. Felizmente há quem se sente num bom banco talhado em madeira, para poder, com ponderação, permitir que a doce criatura tome santuário num recanto de uma atitude cúmplice.

20100502

Mangue Seco, Brasil Um furacão, digo-vos eu. Aqueles braços meigos empurram um par de mãos a velocidades de queimar um fogão. A falar encanta, num dialecto de gestos únicos: o polegar que desenha círculos na palma da outra mão, é só um bocadinho. Se as ondas ameaçam falta de ar, demove-as com gestos delicados. Faz cara de laranja azeda a todos os que não lhe tem doçura, mas não guarda lembrança dos podres. Joga o jogo-do-contente como ninguém; para soltar os restos de tristeza, bate com o ralo da banca nas paredes do lixo. Frágil, deixa marcas no que não está quieto e dá novas formas ao obsoleto. Uma opereta de gritos solta o riso do sisudo e de quem mais passa por Alcobaça. Não há quem não fique assombrado pelo ribombar da escadaria galgada em torrente; até os animais se encolhem, em reverência. Pinta uma tela e o nariz, a golpes soltos de cafeína. Se alguém lhe pede para sentar, já o tinha feito e, quando nos lembramos que precisamos de algo, já o providenciou. Tem quatro anéis à volta de uma vida e guarda o amor do mundo em bolsos esburacados. Falou a beduínos e banhou-se em terras de selva quente, mas uma barata descontrola-lhe as chineladas. Rescreve literatura e une a família. Só não quer é incomodar.