20110528

Bokor Palace, Phnom Bokor, Cambodja Numa cidade do interior, que aqui prefere manter-se invisível, os digníssimos membros da Assembleia Municipal deliberaram, por unanimidade menos um, as mais recentes medidas de encarceramento para crimes sobre a propriedade intelectual. Sendo uma cidade de cadeias, com larga experiência em impunidade, o novo sistema prisional foi desde logo testado no ex-digníssimo membro que se tinha manifestado em desacordo. O procedimento era revolucionário, diziam; a eficácia, nunca vista e o resultado seria, no mínimo, um clamoroso sucesso da justiça. Chega de caminhar no sentido enganoso de considerar o tempo como o factor determinante no peso do castigo. Anos, séculos até, foram desperdiçados na manutenção de vícios e na formação de negociatas. Custava a crer como é que ninguém se tinha, ainda, debruçado em reflexão sobre este assunto. O segredo, revelaram então os ilustres, o futuro da coacção seria, pasme-se, a punição pelo espaço. O delinquente pôs em causa a justeza da autoridade? Reduzam-lhe a cela a um sexto. Aquele idealista que plantou ideias de revolta numa comunidade perfeitamente ordeira e acomodada? Fatiem-lhe o pé direito da solitária, pela metade. Que fazer com todos aqueles que, diariamente, se escusam a um esforço maior na proliferação de uma doutrina tão generosamente oferecida pelo poder vigente, visando ela, apenas e só, o alívio de uma vida sem sentido? É emparedá-los, sem ângulo de viragem. O tempo tornou-se obsoleto; já passou; está acabado. Só um molde de betão armado consegue, em concreto, enformar tais falhas de carácter. Quanto mais apertada, mais rápida sai a fornada de cidadãos exemplares, à montra da sociedade. A Convenção Internacional obriga à existência de uma janela, postigo ou fresta, por enclausurado? Tranquilizem-se os picuinhas, pois até isso foi tido em conta. E é aqui que está o gato. O gato caseiro passa horas, dias a fio, uma vida inteira, aninhado entre a grade e a portada, ou mesmo equilibrado no fino peitoril da balaustrada, imóvel, piscando lentamente os olhos de satisfação. Que delícias servidas em raclette lhe estarão a passar pelos olhos? Não persegue mais a ratice da zona, certo de que estes virão, de livre vontade, lançar os lombos tenros aos seus caninos de felino. Como é possível tal fleuma num gato confinado? As novas medidas da Assembleia Municipal tiveram resultados surpreendentes. Privado de distracções, na clausura do seu metro quadrado, o meliante argumentador pôde dedicar-se a observar por entre as grades, as manigâncias no pátio dos oficiais e rechear a sua lista de conspirações com os mais deliciosos pecadilhos; o livre-pensador, agora curvado sob um tecto baixo, ficou na disposição ideal para entalar o nariz na nesga que se lhe abria para os arrabaldes da cidade, e cheirar os primeiros laivos de descontentamento que normalmente grassam na periferia, antes de rastejarem até ao centro urbano; e que privilégio, o dos emparedados, de corpo amparado pelo próprio edifício, sem outra ralação que não a de observar o sofrimento diário das almas terrenas, desde esse posto sobranceiro, e confirmar a inutilidade da penitência. Consta-se que a excelente Assembleia está reunida a deliberar sobre o uso de capuzes abafadores versus complicações respiratórias. Espera-se unanimidade.

20110518

Kompong Pluk, Cambodja Era uma vez uma cidade de rugas estreitas e profundas, a retalhar a parte velha, por onde escorriam em atribulados corrupios, e muitas vezes se incrustavam como carraças mafarricas, todas as coisas vivas que povoam a imaginação com o crepitar de mil patas finas e o deslizar de escamas no basalto, mas que em nada impedem a sobrelotação por ninhadas de locatários submissos que expiam a sua existência com largadas à porta dos despojos do dia, em sacos atados à noite, prestando, assim, vassalagem e contas de tributo aos medos que os tolhem, e que limpam as oferendas e que raspam o lixo das pregas com ancinhos de metal rebarbado, afundando um pouco mais os sulcos. Uma cidade onde as correntes de ar arrastam grilhetas e onde não se vive para sempre.

20110516

Bilbau, País Basco O chapéu de feltro repousava, cruzando a pena. Sentado, ocupava um lugar esquecido pela idade. Incapaz de de se agarrar ao varão, deixou-se ficar. Por respeito, ninguém comentou; sorriam, educadamente. A medalha de Santa Teresinha, em tons azuis cerâmicos, mantinha um brilho espectral. Pingente numa volta apertada, usufruía, assim, não da graça divina mas da protecção solar proporcionada pela sombra da barbela, ou duplo queixo como este gosta de ser chamado. O pescoço farto e agnóstico, marcou uma linha roxa a toda a volta, delimitando a sua área de opressão. No corredor – isto, para aligeirar a conversa e dispor bem - um tema musical repartia-se por duas orelhas que fantasiavam sobre como os braços daquele fio condutor se iriam entrelaçar, no fim dos dedos. Eis que, mesmo em frente, toma forma uma mulher vulgar, recortada pelo pórtico da escola de freguesia. Pela força com que se abraça à carteira, só podemos imaginar duas coisas: ou ali se esconde, num forro descosido, o rendimento mínimo que lhe garante a família por mais alguns dias, ou este desespero vem da súbita tomada de consciência de que ela própria só existe na forma dos cerca de meia dúzia de cartões que se alinham naquela bolsa contrafeita. Todos os olhares vão agora alternando na direcção de uma lata de cerveja que tamborila um tema alegrete. De dentro dela tinha já saído um génio bem tocado que dissertava, para quem o quisesse ouvir, sobre o miserabilismo destes tempos de antena. Atentemos neste personagem, por mais alguns instantes, na esperança de perceber a fonte da nossa distracção quando temos no colo aquele capítulo mais complexo traduzido do ligúrico.

20110509

Kbal Spean, Cambodja Na estação fresca, entrou um homem com uma barba, qual arbusto desgovernado, e uma mulher de cabelo em copa densa, mais permanente que perene, caindo em pontas de chorão. O homem cofiava o arbusto com a mão em ancinho, de dentro para fora, com uma discrição tal que apenas se notavam umas falanges de pardal a assomar aqui e ali, chilreando de contentamento. A mulher não fez caso e abanou ligeiramente a cabeça. Um casal de melros que ali se debicava nas respectivas penugens, esvoaçou aflito, para logo voltar a se afundar na folhagem espessa. Levado pela brisa fria o homem infestante encostou-se a ela, cobrindo-lhe o tronco com uma sebe desgrenhada de onde começaram a despontar centopeias de raminhos trepadores, verdes e nervosos e brilhantes. A mulher sacudiu-se, na tentativa de abrir uma clareira, mas as luras das lebres, nas raízes, fizeram-na tropeçar. O vento caiu, a aragem gelou e o bosque emudeceu, enquanto a imensa árvore adornou, lenta e pesadona, arrastando consigo o arbusto apaixonado. Na queda, ela aceita e consuma aquele amor, estatelando-se ambos numa cama de folhas secas, felizes pelas gerações de larvas e coleópteros que lhes irão sobreviver.

20110505

Beng Mealea, Cambodja Passivo como era, o sujeito reconheceu o trote; o peito ultrapassava a passada. Conhecendo-se como conhecia, sabia que a cabeça sempre fora de ir mais à frente. À simetria de eixo vertical, que lhe opunha dois braços e duas pernas, sobrepunha-se um corte transversal que, pelo pescoço, tornava cabeça e corpo num casal amuado. É certo que corria por gosto, mas a milha longa à sua frente era incansável. Elaborou um plano. O metrónomo puxava-o pelas orelhas enquanto a vista dava passadas de sete léguas sobre referências fortes: a máquina dos sorvetes de leite, a anémona, a curva fechada, o bosque duvidoso, o fantasma do aquário, o molhe, a pérgola, o cheiro a pizza, a faixa baixa e o farol. Chegar, era meio caminho andado. Depois, na altura de voltar para trás e cumprir a volta, as coisas mudavam de figura e davam-lhe as costas. Se, por um lado, o fim estava mais próximo, por outro, mais retorcido, os marcos de passagem, antes vencidos, voltavam para o atormentar; lembravam a ansiedade do início, de corpo frio e respiração ofegante. Nessa ponta final, quando tudo endurece, apanhava ainda com o passado pela frente. E com o vento; chega a altura de falar do vento, esse de duas caras. O que pelas costas lhe dava palmadinhas e sopros nos tornozelos, e que pela frente, não contente em desfiar as redes penduradas, lhe fazia parede, bufando gravilha para os olhos e escapes livres aos ouvidos. O sujeito cambaleava, de tanto fumar coisas. Um cavalo escoiceava-lhe a virilha. É nesse preciso momento que se opera o extraordinário milagre sobre o corpo corredor. O casal abnegado reconcilia-se, respira fundo e termina fresco como uma alface. Estas, são coisas que não se podem explicar a quem não acredita.