20121027

Barcelona, Espanha

Não me lembro de nada. O que é o mesmo que dizer que tudo me passa pela cabeça.
Às coisas passadas e às pensadas, encaro-as e esgadanho-as na esperança de encontrar uma ou outra entranhada nas unhas. Mas todas me escapam e eu fico a fazer a figura que vejo que faço, e que não é a minha. (Quem é essa, que se insinua?)
Apoio-me numa bengala de risos e vou tocando na vida à minha frente. Pelo caminho não falo com ninguém, mas já não me posso ouvir. Nuns quantos vazios à minha volta construo maciços com as palavras que ainda guardo, as mais fortes, onde depois pouso o que me diz mais. Pelas paredes espalho as mais novas; atrás das portas e ao abrir das gavetas. Assim falam comigo, quando menos conto.
A ausência minha causa-me dor; a minha ausência inflige-a.
Tudo passa.

20121017

Beng Mealea, Cambodja

- Sou eu, a proprietária da abóbora!
O burburinho aninhou-se debaixo do silêncio pesado. Todos os olhares cresceram para aquela voz: os penetrantes, os de soslaio e os cabisbaixos.
Mas até numa plateia agrícola, grassam os gamões. E estes trataram de abafar o assunto.

20121008

Balcões, Madeira, Portugal

Os homens caminham com as mãos atrás das costas, o queixo atrás da barbela, o peito atrás da pança, como uma escadaria. Caminham atrás das mulheres.
Há algo de besouro caído num homem que caminha assim. As mãos entrelaçadas, como numa sombra chinesa que quer à viva força ser tomada por uma pomba, apoiam-se no chão sustendo um corpo maciço, de barriga para cima, de onde esperneiam, vagas, duas pernas e uma cabeça em sofrimento cervical.
Assim se arrastam os dedos, carregando este fardo durante os meses de verão, para terem onde viver no rigor do inverno que chega.
Se perguntarem às mulheres, elas nunca viram isto.

20121007

Cabanas de Tavira, Portugal

Como ria, a areia tinha a língua de fora. No braço de água salgada as boias poisavam como cerejas doces. Sentia-se, no crescendo ténue da enchente, um vazar de terra firme. As embarcações, de variadíssimos portes, igualavam-se no topete com que olhavam a entrada da barra. Os primeiros homens gostavam de pensar que eram ainda os escolhidos do mar, apesar das pernas que arqueavam ao peso da voz rouca e de nunca se terem aventurado para além da segunda margem. A corrente viva, indiferente a quilhas e patilhões, sarava rápido aos cortes de hélice e morria lenta ao toque humano. Aqui ninguém faz pontes, por respeito ao mar ou indiferença à outra terra, que é curta. De qualquer modo as grandes águas entram e saem, fiscalizando o território com cada vez maior descrença.

20121006


Cercal do Alentejo, Portugal

É de manhã. El-rei caminha, em passo quedo, na direção do torreão mais próximo. Tinha acordado com vontade de arejar a pluma. Seguia só, acompanhado pelo Oficial de Toponímia, o Conselheiro de Frivolidades, três aias disfarçadas de valetes e um moço de estrebaria com gadanha até aos dentes.
Do alto do torreão avistava-se todo o reino, mas era mais certo ainda que de todo o reino se via claramente o torreão empinado. As visitas miradoiras do rei raramente passavam despercebidas à plebe, que mergulhava nas suas tocas e carvalhos ocos ao primeiro vislumbre da pluma real.
- Nunca há vivalma, em terra conquistada. - desabafou o rei, pesaroso - É, no entanto, um belo ver.
(“Belver”, tomou nota o Oficial de Toponímia na Real Agenda, “Toda a zona da cordilheira sul até ao bosque das acácias.”)
- Olha acolá, aquela picoteira do monte tão graciosa. E mais além, onde ajoelhamos a S. José, nas matas, depois de termos tratado a peito os valhascos que açoitavam as mouriscas; bem que lhes chegamos a póvoa às meadas. - açorriou o rei já mais bem disposto. - Mais ao sul foi onde cruzamos a água travessa, que nos custou um urro de alazão; lembro-me do Barba Torta, de chança em punho como um terrujo. “Vai a monte”, disse-lhe eu, “Vai a monte, alpalhão”. E tais foram os foros de arrão do vilão que o pusemos em debanda, até ser só um cabeço a sair da vide. - gracejou.
O Oficial de Toponímia não tinha mãos a medir. Folheava a Real Agenda como um eunuco a palma, em dia quente: Picoteira do Monte, Graciosa, S. José das Matas, Valhascos, Mouriscas,...
- No entanto - arrefeceu el-rei - daqui, já nada me chama. Para onde quer que me vire, os meus rodeios são-me sempre banais, as novas conquistas sabem a visitas de tias velhas, tudo me é tão repetido como o ser eu mesmo.
Num misto de enfado e fanfarronice, el-rei O Cognominador, empunhou o seu montante afiado e, Zás!, armou-se cavaleiro. Por falta de cuidado, trespassou-se do trapézio ao oblíquo, o que não deixa de ser uma proeza digna de nota. (“Passamontantes”, apressou-se a escrever o Oficial de Toponímia.)