20160830

Petra, Jordânia

O menino mau empurrou os outros meninos contra o carrossel em movimento. Não satisfeito, lançou baloiços contra os que tentavam fugir. Choradeira, esfoladelas em barda, protestos e reuniões de pais. Ficou decidido que usar uma expressão carrancuda é moralmente ofensivo e que, doravante, todos os meninos com cara de mau estão obrigados a usar o sorriso consensual.
As autoridades mais declaram que só assim se pode garantir uma eficaz aparência de segurança no parque infantil; nem que para isso se rasguem alguns desses sorrisos à bastonada, disseram.
Tudo isto deixa, nos meninos maus, um esgar de satisfação.

20160821

Zambujeira do Mar, Portugal

O pedreiro toma a junta de um perpianho bujardado da Gralheira. Usualmente um homem cinzento, torna-se brilhante quando levanta muros. Muros perenes como fojos, que as crianças gostam de trepar e sentar no topo, a roer uma côdea sobre o território. Muros delicados como longos carreiros de formigas onde o rebanho se encosta seguro. Muros finamente pautados a maça e escopro - muros bons, que também os há - que contam capítulos maiores; mais altos do que a secura das sebes, apaziguadores das quezílias entre copas, frescos como seixos mergulhados. Costuma ele dizer que "um muro não se constrói, um muro é o juntar das histórias de pedras soltas que há muito esperam a sua vez". Os seus muros mostram os dois lados do sol: o da queima e o da sombra. São miradouros, lugares de portões, esconderijos de coisas de amor. Muros que se saltam para fugir dos monstros ou para roubar um beijo.
Assentava, então, o pedreiro um perpianho, quando foi abordado por um ouriço-cacheiro, que o saudou respeitosamente. Em seguida, o pequeno mamífero formulou um longo preâmbulo sobre a arte da pedra, o refinado trabalho daquela obra em particular, a destreza exigida pelas ferramentas de lei, enfim, seria quase um hino não fosse a ausência notória de menção às musas. No final, amaciadas as arestas, o ouriço pigarreou um pedido. Que lhe daria imenso jeito se, precisamente naquele local, o magnífico muro deixasse uma insignificante fresta que franqueasse as suas deambulações diárias.
O pedreiro, bem, ficou petrificado. Boquiaberto! (ficou boquiaberto mesmo antes de ficar petrificado, ou não faria sentido nenhum; um zangão foi até recolher-se por uns momentos no interior da cavidade bocal, encostando a cabeça cansada a uma obturação de compósito) Assim imóvel e coberto de pó de pedra o homem mais parecia uma estátua de jardim; daquelas que representam a têmpera de uma profissão nobre e que são colocadas na zona mais afastado do bosque, onde trepadeiras laboriosas rapidamente as transformam em arbustos. Estava estupefacto! Nunca na sua vida tinha presenciado semelhante estranheza. Uma fresta no seu muro!
Nazaré, Portugal

A cidade resolveu tirar uns dias de férias. Padecia de má circulação e as costas curvas davam-lhe um ar recôndito. Sentia o interior todo revolto; gases, muito provavelmente.
Tinham-lhe falado muito bem de uma vilazinha pitoresca nas montanhas, servida num lago de trutas. Imaginou-se logo lá, a refletir sobre o espelho d'água; a tomar o refresco mais usual, na praceta; a saudar os locais com aquele ar prazenteiro que é o de quem desfruta.
Sem mais delongas fez a mala, trancou tudo e sacudiu os cerca de 550.000 habitantes para os arrabaldes, antes de partir.