Deserto de Wadi Rum, Jordânia
Ao condutor do funicular de Artxanda só lhe era reconhecido ser uma cabeça. Isto, se é que se pode chamar cabeça àquela secção longitudinal entre a pala hirta do bonezito revolucionário e a metade superior do bigode gendarme que o tablier se esforçava por ocultar.
Mas nem é preciso saber se é correcto ou não dar tal nome a essa nesga de funcionário, pois é exactamente esse pedaço que lhe basta para ir aos limites de uma vida que muitos, de tanto suspirar por ela, ganham sopros no coração.
Um homem assim vivido, tem a serenidade de aguardar pelo fim do coro de gargalhadas injuriosas, para depois, pacientemente e sem nada a esconder, assombrar com a verdade:
- Levado por forças mudas o habitáculo eleva-se, encarando bem de perto o mais profundo da terra. Sem inclinações mundanas, passo rente a tudo o que sustém a encosta; os extractos, as fissuras ameaçadoras onde coabitam a brita e o lajedo, subindo sempre, e sempre mais detalhado é o desespero que se agarra à rocha e derrapa no entulho. Haverá algo mais elevado que um vislumbre dos cantos mais rudes da alma da terra?
(Aqui aguarda-se a saída ordeira de todos os passageiros, para que, e sem a possibilidade do testemunho popular, o bonezito desapareça do posto superior e desponte, fazendo jus ao clássico número de casino com dois armários e um alçapão - este último quase esquecido por todos, de tão enlevados que estão pela reputação internacional do ilusionista -, na cabina baixa do funicular, mais vigilante do que nunca, apesar da enganadora apatia.)
- Haverá. Vê-la subir aos céus, enquanto descemos, de cabeça baixa e dever cumprido, para cada vez mais perto de onde tudo começou. Que magnífica dualidade: caímos vertiginosamente nas entranhas do ferro e da madeira talhada, esmagamo-nos por onde a multidão se parte em dois, e é aqui que os céus se abrem, de par em par, com tal estrondo, que tememos uma chuva de estilhaços. E tudo isto se repete de 15 em 15 minutos. Pelo menos, no meu turno.
20110329
Deserto de Wadi Rum, Jordânia
Ao condutor do funicular de Artxanda só lhe era reconhecido ser uma cabeça. Isto, se é que se pode chamar cabeça àquela secção longitudinal entre a pala hirta do bonezito revolucionário e a metade superior do bigode gendarme que o tablier se esforçava por ocultar.
Mas nem é preciso saber se é correcto ou não dar tal nome a essa nesga de funcionário, pois é exactamente esse pedaço que lhe basta para ir aos limites de uma vida que muitos, de tanto suspirar por ela, ganham sopros no coração.
Um homem assim vivido, tem a serenidade de aguardar pelo fim do coro de gargalhadas injuriosas, para depois, pacientemente e sem nada a esconder, assombrar com a verdade:
- Levado por forças mudas o habitáculo eleva-se, encarando bem de perto o mais profundo da terra. Sem inclinações mundanas, passo rente a tudo o que sustém a encosta; os extractos, as fissuras ameaçadoras onde coabitam a brita e o lajedo, subindo sempre, e sempre mais detalhado é o desespero que se agarra à rocha e derrapa no entulho. Haverá algo mais elevado que um vislumbre dos cantos mais rudes da alma da terra?
(Aqui aguarda-se a saída ordeira de todos os passageiros, para que, e sem a possibilidade do testemunho popular, o bonezito desapareça do posto superior e desponte, fazendo jus ao clássico número de casino com dois armários e um alçapão - este último quase esquecido por todos, de tão enlevados que estão pela reputação internacional do ilusionista -, na cabina baixa do funicular, mais vigilante do que nunca, apesar da enganadora apatia.)
- Haverá. Vê-la subir aos céus, enquanto descemos, de cabeça baixa e dever cumprido, para cada vez mais perto de onde tudo começou. Que magnífica dualidade: caímos vertiginosamente nas entranhas do ferro e da madeira talhada, esmagamo-nos por onde a multidão se parte em dois, e é aqui que os céus se abrem, de par em par, com tal estrondo, que tememos uma chuva de estilhaços. E tudo isto se repete de 15 em 15 minutos. Pelo menos, no meu turno.
20110313
Viseu, Portugal
O lado desconhecido, normalmente pintado de negro profundo é, se pensarmos bem, o que mais oferece a outra face. Isto levanta um problema de pigmentação: como pode ser obscura uma faceta assim tão esquiva aos ultravioletas? Albina, é o mais certo; a expressão mais insípida de um caco de alva porcelana.
Mas, e o inverso? Aquele mais radioso? O que se nos abre, despudorado, mostrando uma fileira de esmaltes planos e rigorosos, onde nada de interessante se consegue agarrar? De tão exposto a uma luz maior, só se nos oferece em tom baço, escuro e enrugado.
O melhor, mesmo, será trabalhar o recheio, fazendo brilhar umas arestas bem polidas.
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