Já não sei se o leio ou se é ele, o livro, que me lê a mim. Tenho a nítida sensação que me observa. Ou me engano muito ou acabei de ouvir um suspiro sair da fenda escura onde as páginas mergulham em arco. Acho que é ali que tudo se passa, os relatórios, as trocas de informação, os registos do meu quotidiano. Ali, na intimidade da lombada.
Não estou a perder o juízo, sei-o com a certeza de quem respira saúde sem inspirar cuidados. No início estranhava as coincidências da narrativa. As divagações em que me deixava cair, via-as impressas em letra de forma. À conclusão brilhante a que eu esforçadamente chegava, chegava o parágrafo primeiro. Que desconforto virar a página e ter de entrar naquela viela desconhecida com a vizinhança a cochichar entrelinhas. Em tudo o que lia, naquelas páginas espelhadas, revia-me até às entranhas. Quem me conhecia aquele lado? Quem me escrevia assim?Suspeito que me acerquei de uma coisa importante; uma conspiração indizível que me vai levar até ao fim: são os livros que nos leem. Eles não abrem os limites da imaginação, como se conta, saqueiam-na sem cerimónias. Que ideia extraordinariamente maquiavélica essa de aguardar pelo momento em que nos entregamos languidamente à leitura, de cabeça aberta, para, lançando uns preâmbulos supostamente inocentes, fazerem-nos cair numa emboscada de onde saímos vazios de tudo o que era intimamente nosso. E o mais sinistro é que fechamos o livro, onde nos lemos, glorificando o ladrão do autor pela sua magnífica capacidade de saber o que nos vai na alma.