Efeso, Turquia
Conheci, assim de passagem, um sujeito de semblante obtuso (mais como o ângulo aberto do que o discernimento fechado) que tinha por hábito tomar nota de tudo o que lhe ia sucedendo ao longo do dia. E quando digo tudo condescendo com a inimaginável enumeração de episódios encadeados na sebenta que enrolava no punho.
Indiferente ao nexo, hierarquia ou verosimilhança, era irredutível quanto ao rigor da sequência. Banalizo-o (e a mim próprio) ao tentar exemplificar esta, digamos, obsessão cronológica pelo ditado, mas a sua nota “Acordei a custo, tal era a força da goma remelenta que insistia em me manter na escuridão.”, nunca viria antes desta outra: “Estava eu quase a ser alcançado pela figura disforme e tão familiar nos meus pesadelos, quando um baque surdo, como o que faz uma velha a cair abaixo da cama, me acordou.”. Ao descer a rua pelo passeio da direita (onde se respirava com menor intensidade a exaustão automóvel) estenografava com vigor e dislexia: “Desço esta calçada íngreme, certo de que a escolha do lado concordante com o trafego insuflará algum apreço ao meu único par de pulmões.”. Num almoço, após destrinçar uma espinha de faneca da garfada iminente, registou: “Foi por um triz! Um mero soslaio fortuito revelou a boa peça que me saiu esta faneca dissimulada com a sua espinha prestes a travar-me a goela.”.
Aconteceu mais tarde, quando tomava notas do entardecer - fazendo algumas referências ao estado preocupante das costuras gastas da sua jaqueta - que o interpelei pela primeira vez. Foi como conversar com um diretor de cena ou um retratista. Cada frase cuidadosamente adaptada ao espaço entre linhas; cada entoação ou tique dissecado em superfície pautada. Aprendi, deste modo gaguejante, a remoer um diálogo. Tive tempo, entre deixas, de repensar todas as veleidades ocas que tendem a escapar entredentes. Percebi a displicência da fala e tornei-me, desde esse dia, muito mais mudo do que antes.
O sujeito lá ia falando, ou melhor, respondendo delicadamente às minhas indiscrições, transcrevendo-nos com naturalidade. Explicou então, paciente, o propósito do seu método.
Recordo-me que na sequência dessa revelação, passei rapidamente de uma estupefação maravilhada àquela irritação provocada pelo reconhecimento da evidência banal. Uma reação que se repete cada vez menos, ao longo da vida, e que tem o dom de nos deixar menores e menos fantasiosos. Como crianças que crescem, e que a cada pergunta respondida com uma aridez bem intencionada, vão perdendo a capacidade do irreal.
O compromisso daquele homem era então o seguinte, digo eu já amargurado e consciente de estar a destruir efabulações: registar cronologicamente todas as ocorrências de algum modo ligadas à sua existência física e os exercícios de raciocínio daí resultantes. Deste modo, praticando com inflexibilidade, ia-se, por assim parafrasear, da lei da morte libertando. Eliminando arquivo morto. Quando inclinava a cabeça para tomar notas, o assunto escorria e gotejava tinto, no papel, sendo absorvido por uma qualquer regra da química que não cabe aqui questionar, uma vez que funciona em favor do exposto. Aliviado do peso da memória, o cérebro suspirava longamente soltando aquele rangido do reformado que se recosta num banco ainda ensolarado. O sentimento de perenidade ficava assegurado por uma consciência limpa. Nesse vazio tudo era novo, vivido com o afeto de uma primeira vez.