20101226

S21, Phnom Penh, Cambodja A ministra Thirith guardava o crânio de Yorick na pasta dos assuntos sociais, embrulhado num krama axadrezado. Resolvidos os afazeres oficiais, ela dedicava-se a longas conversas com o seu velho companheiro de faculdade. Este, à semelhança de outros crânios, levantava questões tão fundamentais, que a senhora, furibunda, só lhe apetecia reduzi-lo à vulgaridade. Nesses momentos, tomava um passo miudinho e apressado - aquele que as pessoas tomam quando estão visivelmente irritadas, de costas tesas, marcando bem o calcanhar e logo após assentando, com estrondo, o resto do pé -, corria as redondezas à cata de pessoas de baixa condição e retirava-lhes a cabeça. Depois de limpas, espalhava essas cabeças sobre o crânio de Yorick, convicta de que a condição de estar ao nível da populaça lhe baixaria a garimpa. Assim satisfeita com a suposta humilhação do crânio, considerava o assunto morto e enterrado. Estes arrufos aconteciam-lhe amiúde. Até podia contar mais, mas o resto é silêncio.

20101218

Ta Prohm, Angkor, Cambodja A floresta das montanhas de Cardamomo é impenetrável. O ar carregado segura, a custo, 98% de humidade. Um pouco mais e desata num pranto. Segurando uma vara de bambu com a ponta cortada em bisel, o ranger Hun Lei dança cautelosamente pelo trilho (que não tínhamos reparado antes, quando utilizamos o termo impenetrável). Trauteia uma melodia francesa, muito em voga nos anos 30. De 3 em 3 passinhos, levanta cada um dos pés, ora para a frente, empinando graciosamente a biqueira, ora para trás, rodopiando o calcanhar sob um olhar atento por cima do ombro, enquanto marca o ritmo, dando com o varapau nas solas. A experiência ensinou-o que só com esta deliciosa dança da Bretanha se consegue aligeirar o ambiente e impedir o dilúvio.
Petra, Jordânia Não tendo rigorosamente nada para fazer, a possibilidade de me dedicar a algo supérfluo e aprazível, insinua-se, sorrateiramente. Pouco a pouco, um número considerável de coisas mirabolantes entope-me o discernimento. Despejo uma garrafa de água pela goela abaixo (ando a ingerir poucos líquidos) e reparo - É curioso! - que todos usam o mesmo tipo de laço de cachecol. Pareciam todos tão diferentes... Os ruídos massacrantes, como o do ar condicionado defeituoso que me serve de tecto, tendem a desaparecer, se lhes der tempo. Se calhar ainda lá está, eu é que não lhe dou ouvidos. Com as pessoas, é um pouco mais difícil, mas faz-se. (Passa-me pela cabeça o tom moreno das bolas de Berlim do Natário; deve ser o cérebro a pedir açúcar.) Já me alonguei demasiado.
Wadi Rum, Jordânia Tudo começou quando, num momento de fraqueza, se lançou na cama de rede a ler um romance. O enredo, um bocadito morno, encheu-se de um balanço épico. A cada linha de texto, a vegetação crescia pelo horizonte acima, assombrando-lhe a página, e as nuvens escorriam, benevolentes, debaixo do seu corpo. Depois, no parágrafo seguinte, eram os céus que se enrolavam em vagas sobre o antigo palácio do governador, que adernava, espalhando os lustres pelos tectos trabalhados. O leitor suava. Nunca uma obra tinha mexido tanto consigo. Como poderia voltar a ler, depois disto? Sentado à mesa? Recostado na poltrona? Imagens de tal modorra arrepiavam-lhe a nuca. Deu por si a mordiscar pequenos contos, no baloiço do parque, às escondidas. De madrugada, antes da primeira fornada, corria pela marginal ao ritmo dos audiolivros mais populares. Nunca o confessou, mas foi visto a montar o cavalo branco do carrossel vermelho, enquanto lia os clássicos russos. Não há limite para a degradação humana. Uma vez, leu de um fôlego uma história vertiginosa, enquanto se lançava da janela do 23º andar do Hotel de l´Ecole Centrale, em Paris. Mas isso foi só uma vez.