20090430

Ordino, Andorra A caminho de casa o jovem super-herói não cabia em si de contente. Parava constantemente para recolher os seus pedaços que, com a excitação, iam caindo pela berma. Os habitantes da aldeia entreolhavam-se e murmuravam entre dentes, mas isso é coisa que os habitantes das aldeias costumam fazer. De qualquer modo o jovem super-herói continuava a caminho de casa, alheio a tudo e a todos. Tinha finalmente descoberto o seu super-poder. Projectava sombras! Projectava sombras sobre tudo. Logo de manhã é que era, o seu poder estava no auge. A sombra era projectada a distâncias incríveis escurecendo tudo à sua passagem. Com o passar da manhã ia diminuindo, até que a meio do dia praticamente só conseguia projectar uns centímetros de penumbra. Cansaço, pensava ele. Dormia então uma sesta e durante o correr da tarde via com orgulho o seu poder a crescer novamente, levando as sombras ao infinito. Á semelhança de tantos outros meninos prodígio, acabou como 'abat-jour' num motel de categoria duvidosa.

20090427


Piódão, Portugal

O homem olhava fixamente a tela a uma distância correctamente calculada a partir das dimensões da peça, técnica utilizada e condições de luz do momento. Olhava-a, também, seguindo as mais rigorosas regras da etiqueta de galeria, não esquecendo uma quase imperceptível inclinação da cabeça e um displicente colocar dos dedos indicador e médio sobre os lábios. Era perfeito. O mais distraído dos visitantes não podia deixar de se sentir um verdadeiro idiota, perante tal relação de cumplicidade. Homem e tela eram um só, descodificando conceitos e libertando metáforas. Parecia ter passado uma eternidade naquela posição, quando o fiel cão-guia se roçou nas suas pernas dando-lhe o sinal esperado. Aliviado o homem agarrou a trela e deixou-se levar.
Gerês, Portugal A comunidade de saltimbancos vivia momentos particularmente difíceis. Desde que o homem mais forte do mundo os tinha deixado que a falta de segurança no acampamento originava um verdadeiro êxodo de especialidades. Até o velho engolidor de espadas se limitava a baionetas, pelo sim, pelo não. Curiosamente só os equilibristas teimavam em ficar. Imóveis, nas posições mais incríveis, sustinham, sem oscilações, os objectos mais improváveis. Sem auxiliares para apararem graciosamente a queda dos objectos e plenamente conscientes da sua capacidade física e mental para manterem uma exibição por tempo indeterminado, esperavam impávidos e serenos que os companheiros desistissem e provar assim a sua supremacia. Ora isto não ajudava em nada a manutenção do acampamento que acabou por, também ela, ir embora.

20090426

Pompeia, Itália

O aviso chegou demasiado tarde. Pelo aspecto tinha passado mais uma noite na pândega a alimentar uma cirrose hepática promissora. Ultimamente isto acontecia demasiadas vezes para alguém com tantas responsabilidades. É claro que quem se aproveitava disto era a surpresa, que conseguia, assim, apanhar tudo e todos. Mas desta vez as consequências da sua falta foram demasiado graves e o aviso, numa reacção desesperada, pegou numa mão cheia de incógnitas e suicidou-se. E agora?

20090419

Meteora, Grécia Tudo o que eu já vi, desfez-me. Vivi de coração esmagado, apertado por gente mais dura do que eu. Hoje já não distingo quem vem lá de baixo. São muitos, indiferentes e trilham caminhos largos. Muito mais do que outrora preciso de refúgio, de estar perto do céu. Não espero que alguém me ouça, rezo, sim, pelo esquecimento.

20090418

Helsínquia, Finlândia Jean S. olhou para cima num misto de apreensão e temor. Pode-se mesmo dizer que olhou para cima com apreensor. O céu apresentava-se carregado e ás rodelas, o que não é, de todo, a maneira mais educada de se apresentar. Já há algumas horas que Jean S. estudava as inúmeras saídas possíveis e uma coisa era certa: o êxito da fuga dependia da ausência de hesitações. Chamando a si todas as suas forças, instruiu-as nos diferentes caminhos que cada uma deveria tomar. Colocou-se então num ponto exacto, por baixo de uma das maiores rodelas de céu, e pensou - Mais uma, pela pátria. Então, encolheu-se no dó menor que conseguiu imaginar e impulsionou-se numa ascendente vertiginosa. Só foi pena a sensação de náusea com que ficou o resto do dia.

20090414

Lisboa, Portugal A pobre tartaruga-verde não sabia para onde se virar. Felizmente reparou que o liquidificador era 'amigo do ambiente'.

20090411

Lisboa, Portugal O velho cinzelador sentiu uma guinada na zona do metacarpo da sua melhor mão, a direita. Como tinha já fracturado o escafóide, em miúdo, largou de imediato o cinzel de aço e soltou um 'éh, lá' cuidadoso. Desanimado, massajou a mão dormente enquanto olhava para o pássaro que ganhava forma na sua bancada. - Se ao menos esculpisse um raio d'um gato - resmungou enquanto as pombas picavam violentamente o tecto de fibrocimento do atelier.