20100729
Nubia, Egipto
No princípio, era um frio de rachar.
Atabalhoado, enchia-me de roupa, às camadas. Cada uma abafava a interior, deixando os primeiros rasgos pálidos de mofo. Arrastando-se pela sarja, puíam a ganga nos joelhos, como se fosse chita.
Então alguém disse "Estiquem a corda."; e o ar aqueceu.
Os trapos velhos foram-se descascando e a própria pele, agora exposta, esfolou ao sol.
Foi então que, na segurança das molas, as peças mais íntimas começaram a esvoaçar. E a corar. De satisfação.
20100720
Chichén Itzá, México
Deixei crescer uma barba. Não é propriamente uma barba e, sejamos rigorosos, ela está-se nas tintas para o que eu a deixo ou não deixo fazer. Seria então mais correcto dizer que uma nuvem tomou conta da minha cabeça. Quem me vê a passar numa galeria comercial apinhada, olha em redor, receando chuva.
Ultimamente está tão crescida que comecei a tropeçar nela, na barbicha, como eu carinhosamente lhe chamo. Devia-me sentir orgulhoso, mas sinto-me a asfixiar. Ela é agora um arbusto imenso - não - um pinhal manso apertado daqueles que os excursionistas que vêm apreciar as amendoeiras em flor imaginam ocultar o monte onde irão comer qualquer coisa e pendurar as suas camas de rede, durante a tarde.
Como monte que sou, agora, custa-me muito passear até à baixa ou fazer a marginal ao domingo de manhã. Travei conhecimento com uma família de toupeiras que me tratam com muita consideração. Dizem-me que grandes áreas da minha barba (chamo-lhe minha, ainda) estão a ser devoradas pelas chamas e que apenas a zona do bigode foi considerada reserva protegida.
Tudo isto entristece-me profundamente. Nunca me gostei de ver só de bigode.
20100713
Porto, Portugal
A solidão apoia-se numa só perna. Cada braço inerte esconde-se do outro atrás do corpo baço.
Pergunta quem passa "Como se tem em pé?", alheios ao desequilíbrio que provoca tal arremesso.
Um salto a pé-coxinho pressupõe uma esperança de elevação, ao início, e um desânimo cansado, na queda.
Ou será antes uma vontade de se lançar no vazio logo agrilhoada por uma réstia de teimosia?
O espelho baixa-lhe os olhos, pois traz a ilusão de partilha na franqueza de um retrato cru.
A outra perna tem cãibras.
20100712
Vila Nova de Gaia, Portugal
O polegar e o indicador tamborilam, impacientes. Aguardam ordens. O ritmo é caribenho; a fome é negra. Sem cerimónia, entram juntos no estreito pacote metalizado. Assim como entram, logo param, assustados. À sua volta, as paredes quebradas espelham milhares de dedos disformes numa agressiva posição de tenaz. Não fosse a gordura que as embacia, tinham perdido o tino e ganho tonturas. Resolvem fechar os olhos e ir mais fundo, à cata da última batata. Mas esta é fina e mete-se no canto do pacote. Os dedos, de tanto foçar, espetam migalhas duras debaixo das unhas. Feridos e sebentos, recuam amuados, deixando um rasto de sangue gordo.
O pacote é abandonado no entulho.
Dois dias depois, a batata assume que é seguro sair.
Mal põe o pé de fora é devorada por um Diabo da Tasmânia que ali montava cerco desde que tinha sentido o odor do tubérculo. Em alturas de escassez estes mamíferos marsupiais podem também comer insectos, cobras e frutos.
20100704
Nova Iorque, EUA
Um escritor publicado lia, num silêncio atento, o primeiro manuscrito de um jovem sentado à mesma mesa redonda. Ao seu lado, um romancista de referência deitava uns olhos curiosos às provas corrigidas do mais recente trabalho deste escritor. Entre o romancista e o jovem - como a mesa é pequena! - um laureado das letras tomava, com mão céptica, o peso do último romance publicado pelo autor de referência. De um lugar por onde nunca se imaginaria aparecer tal coisa, emergiu uma garoupa que abocanhou o laureado, cuspindo o romance.
E assim por diante.
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