20111230
Barcelona, Espanha
Não me mexo, e tudo à minha volta pára. Depois avanço, e a engrenagem ferrugenta desmultiplica-se em oportunidades. As mais próximas, passam a correr e, ainda que tivesse as mãos a medir, são demasiado efémeras para me despertarem pele de galinha ou formigueiro no interior do lábio. À medida que me salta a vista para além do óbvio, reparo que as coisas de além abrandam e se tornam mais apetecíveis. E lá ao longe - meu Deus! - que extraordinárias possibilidades troçam do meu curto alcance.
Quando me chego a elas, perco o interesse, esqueço-me ao que vim e reparo que lá ao fundo, passadas as camadas de cenários mortiços, há uma nuvem a tomar a forma do que me interessa.
20111204
Barcelona, Espanha
Se juntarmos um molho de correligionários cheios de doença numa pandilha deserta, podemos enfeitar o final de um sumptuoso repasto com as suas fezes. A toda a volta achegam-se manjedouras com bordões de Argan encastoados a tomilho fresco. De tempos a tempos, cada narina inspira uma boneca de sementes, desatando num chorrilho que ficaria muito bem ao pescoço de qualquer mulher da terra.
Sobre a mesa escorre, da abóbada, um lustre. Todos os comendadores e anestesistas lhe prestam reverência e aguardam uma palavra, uma síncope. Tudo termina bem regado, com viçosas indiscrições a entrelaçarem-se nas pesadas sanefas de brocado.
Quando as enceradoras dançam a última circunvalação nos salões vazios, já os vigilantes sonham com o fausto das cavalgadas tumbas.
Marraquexe, Marrocos
Os pescadores aguardam, à entrada dos derbs, o passar o cardume: esperam os soltos. Mal os sentem, lançam-se na corrente e tornam-se engodo. Rasgam um sorriso em mil pedacinhos brancos e atiram uma mão cheia, no caminho da vítima. Esta, se se recusa a avançar, tem já um braço à volta dos ombros, a cortar-lhe a retaguarda. Um molho de menta fresca é logo enfiado no nariz, que já ferve.
Tudo parece bem, agora. A presa dócil segue o captor, em esperançosas flutuações pelos canais. O sol forte dá lugar ao breu mofo de uma entrada baixa. Os olhos demoram a responder. É o suficiente para o incauto cair no tanque. A cal viva deixa-o meio morto e todo careca. Agora é fácil, com alavancas de cedro, mudá-lo para a bacia de guano, onde se vai tornar rijo. Uns dias depois, sob placas de açafrão e canela, o sujeito estará macio e perfumado, pronto a ocupar o seu lugar em frente a uma lareira.
Há quem não note diferença, nesta nova forma de vida. Há até quem se sinta mais feliz. É que é bem melhor sentir os corpos nus que se lhes enrolam, ao serão, do que as solas entranhadas de gravilha que os amansaram a vida toda.
Marraquexe, Marrocos
Os lampadários almorávidas tomam a forma do relevo decorativo sob o qual pendem, ou é o inverso? Os mestres de artes que se empoleiram nos selins ferrugentos, juntamente com quartos de tinta, sifões e abraçadeiras, aguardam uma empreitada, ou são os fungos bolorentos, as meadas de cabelo e sabão negro e os bules silenciosos que rezam pela chegada dos primeiros? Os dorsos escuros que cortam as águas barrentas, no lago do pavilhão, cavalgam pesadelos de fundo viscoso, ou são esses gumes diligentes que mantêm as águas lisas? As muralhas da cidade desagregam-se pacientemente, ou são sinais apaixonados de quem anseia o abraço do andaime e o afago da colher de pedreiro? As flautas encantam mesmo as serpentes, ou são apenas cadáveres hirtos de velhos répteis, que intrigam os seus congéneres vivos ao exalar sopros humanos? As grandes laranjas que vergam os ramos, escarram melaço ás azeitonas pretas, ou são as oliveiras, raposas escorregadias, que assim se resguardam da cobiça pública?
O que é certo, é que um mapa nunca se volta a fechar pelas mesmas dobras.
Marraquexe, Marrocos
A cotovia voava alto sobre os mortos, - carroças e carroças de laranjas deixavam-no bem claro - semicerrando os olhos ás fumarolas de incenso. De quando em quando, admoestava os crentes com uma voz roufenha, mas eram poucos os tapetes que sacudiam os ombros.
Havia de tudo, na praça: homens rentes ao chão, a soprar cobras e lagartos, outros, enormes, de cabeças afiadas e uns espantalhos coloridos e farfalhudos, que agitavam quinquilharias para afugentar a sede. Quem por ali passava, esquecia as peias e dava cambalhotas para trás, como um macaco. Os mais cuidadosos, achavam por bem assistir a tudo de longe, mas o toque do batuque esticava a pele e eriçava de tal maneira as virilhas, que o engodo esfarelado desaparecia num instante.
Na cidade vermelha de sangue nas faces, faziam-se amigos. Na cidade vermelha de sangue nas fezes, compravam-se inimigos.
Uma vez, uma pomba enfunada teve um lençol de músicos escuros a tocar só para ela; uma outra, uns homens de vestido comprido, como mulheres, abandonaram as mulheres soturnas, como homens, e foram-se lavar, nas extremidades.
Se, depois disto, referirmos ainda que a pele perde o pelo em cal viva e endurece com excrementos, vão achar que nunca saímos do sítio; que andamos ás voltas.
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