Barcelona, Espanha
Uma menina não rebenta as águas, como um petardo sem maneiras; sussurra um riacho melodioso. E quando se é assim tão surpreendente, desprezam-se os momentos óbvios e chega-se naquele que ninguém conta e que é tão inesperado por todos.
Sendo imensa, no ínfimo detalhe, não se deixa marcar por ferros ou sugar pela voracidade do mecânico, mas desliza em gratidão, sulcando apenas e só uns quantos punhados de corações.
Quantos não falantes, são escutados assim? Que outros olhos fechados conseguem ter a alma tão espelhada? Sem pena dobrou o choro, sem mácula dobrará o riso. Estranho poder, o da fragilidade.
Foi quase no fim que nasceu, lá longe, como num chuveiro, deixando-nos a gotejar. Agora é preciso contar-lhe as histórias para que, quando abrir os olhos, nos reconheça como iguais.
20120721
Abu Simbel, Egipto
Puxo cada onda que se desfaz como mais uma coberta para cima do corpo. Descoberto, pela indiferença com que se é queimado vivo, assim o gelo me quebra.
O areal é imenso, no seu isolamento, e a pele esboroa-se em poeiras sílicas, cíclicas como a nortada. Mesmo os que voam sobre a podridão meditam aqui, alinhando as penas ao molhe.
Ao fundo, a névoa forma cargueiros sinuosos e faz parecer fácil uma vida sonhada no mar.
Puxo cada onda que se desfaz como mais uma coberta para cima do corpo. Descoberto, pela indiferença com que se é queimado vivo, assim o gelo me quebra.
O areal é imenso, no seu isolamento, e a pele esboroa-se em poeiras sílicas, cíclicas como a nortada. Mesmo os que voam sobre a podridão meditam aqui, alinhando as penas ao molhe.
Ao fundo, a névoa forma cargueiros sinuosos e faz parecer fácil uma vida sonhada no mar.
20120710
Preah Khan, Cambodja
Ela agarrou-me o braço com a violência de quem se assusta ao ver um porco morto, no mato. Partilhei a emoção, deixando a carne ceder às suas unhas finas.
Tínhamos acabado de atravessar a estrada deserta que cruza o bosque, e já aí algo de curioso tinha acontecido. Um daqueles instantes do diabo, como se costuma dizer. Ao sair da frescura da sombra para o bafo quente do alcatrão, uma espiga de feno agarrou-se-me à meia, picando a canela e obrigando-me a uma acrobática sapatada irlandesa. Esta esquiva, tirou-me da trajetória de uma vespa irritada, indo o seu ferrão suicida cravar-se no sobrolho da minha companheira, que rodopiou 3 vezes, pedindo água. O destemido insecto não aguentou tal carrossel, rasgando-se-lhe o ventre e indo morrer longe.
Tudo isto se passou antes de sabermos que estava um porco morto no mato, coisa bem mais curiosa do que esta.
Soltando o braço, deixei-a a olhar em volta, não fosse um parente vivo aparecer a reclamar o cadáver, e fui-me certificar de duas coisas: se era mesmo um porco e, nesse caso, se estaria efetivamente morto. Ainda coloquei a hipótese de ser um corpo humano, mas nenhum grau de decomposição o tornaria assim tão porco. Era um destes belos animais, sem dúvida, e até ligeiramente malhado, com ar de quem às bolotas retribui com um suculento pernil. Parecia sorrir, expondo uma fileira impecável de dentes afiados, mas na realidade era o trabalho de limpeza de um enxame de varejas sortudas.
Documentei cada tufo de urze que lhe surgia entre pernas e cada cardo que lhe adornava o ventre. A causa de morte era-me tão desconhecida como a causa que o teria feito viver uma vida de engorda e abate. Como estava deitado de lado tinha duas pernas hirtas no ar, a apontar o trilho. Toquei-lhe ao de leve na pata traseira e, trufas!, esta caiu, enterrando-se na folhagem.
De imediato o porco tossiu, cuspindo moscas, e levantou-se com o mesmo sorriso prazenteiro. Educadamente fez uma vénia - o que não é nada fácil para quem não tem uma das patas traseiras - e agradeceu efusivamente o facto de o ter livrado de uma das quatro razões que o faziam ser um animal perseguido.
- Agora vou indo. - acrescentou - Ainda tenho de me livrar das outras três; só depois poderei andar descansado.
Deu meia volta, fazendo rodopiar a argola do nariz, e saiu a saltitar pelo arvoredo.
Ela agarrou-me o braço com a violência de quem se assusta ao ver um porco morto, no mato. Partilhei a emoção, deixando a carne ceder às suas unhas finas.
Tínhamos acabado de atravessar a estrada deserta que cruza o bosque, e já aí algo de curioso tinha acontecido. Um daqueles instantes do diabo, como se costuma dizer. Ao sair da frescura da sombra para o bafo quente do alcatrão, uma espiga de feno agarrou-se-me à meia, picando a canela e obrigando-me a uma acrobática sapatada irlandesa. Esta esquiva, tirou-me da trajetória de uma vespa irritada, indo o seu ferrão suicida cravar-se no sobrolho da minha companheira, que rodopiou 3 vezes, pedindo água. O destemido insecto não aguentou tal carrossel, rasgando-se-lhe o ventre e indo morrer longe.
Tudo isto se passou antes de sabermos que estava um porco morto no mato, coisa bem mais curiosa do que esta.
Soltando o braço, deixei-a a olhar em volta, não fosse um parente vivo aparecer a reclamar o cadáver, e fui-me certificar de duas coisas: se era mesmo um porco e, nesse caso, se estaria efetivamente morto. Ainda coloquei a hipótese de ser um corpo humano, mas nenhum grau de decomposição o tornaria assim tão porco. Era um destes belos animais, sem dúvida, e até ligeiramente malhado, com ar de quem às bolotas retribui com um suculento pernil. Parecia sorrir, expondo uma fileira impecável de dentes afiados, mas na realidade era o trabalho de limpeza de um enxame de varejas sortudas.
Documentei cada tufo de urze que lhe surgia entre pernas e cada cardo que lhe adornava o ventre. A causa de morte era-me tão desconhecida como a causa que o teria feito viver uma vida de engorda e abate. Como estava deitado de lado tinha duas pernas hirtas no ar, a apontar o trilho. Toquei-lhe ao de leve na pata traseira e, trufas!, esta caiu, enterrando-se na folhagem.
De imediato o porco tossiu, cuspindo moscas, e levantou-se com o mesmo sorriso prazenteiro. Educadamente fez uma vénia - o que não é nada fácil para quem não tem uma das patas traseiras - e agradeceu efusivamente o facto de o ter livrado de uma das quatro razões que o faziam ser um animal perseguido.
- Agora vou indo. - acrescentou - Ainda tenho de me livrar das outras três; só depois poderei andar descansado.
Deu meia volta, fazendo rodopiar a argola do nariz, e saiu a saltitar pelo arvoredo.
Como hei-de explicar que não se entra, assim, no Cercal?
Que é um processo de namoro, misto de engodo e cheiro bom?
Quem se achega, vem a evitar a esteva peganhenta e os seus olhos já viram montado de sobra (serpentear por estas árvores despidas da cintura para baixo, deixa marcas tão fortes que bem se pode estar uma década sem conseguir fazê-lo de novo).
É então que nos lançam as sebes. A buganvília e o jasminóide iscam-nos pelas narinas e sentimo-nos num caminho a sério. Há uma certa ordem a alinhar o desgovernado.
Ficamos preparados para o que vem a seguir. O casebre já não assusta e os terraços de rafeiros apresentam-se bem presos. Confiantes, aproximamo-nos do arbusto aparado com a curiosidade de um pardal; arrancamos uma folhita, para cheirar, e seguimos por um estradão de levadas.
Quando o casario afunila e se inclina para nos ver melhor, sente-se um certo desconforto, mas os azuis, os vermelhos e os amarelos que bordejam os brancos, distraem e impedem que se veja o tapete de alcatrão por onde já caminhamos. E depois há sempre o sorriso tranquilizante de uma velhinha, ignorando nós que aquelas agulhas que tricotam, também mexem as poções que borbulham no quarto dos fundos.
Quando se dá por ela, já estamos na rotunda; bem no meio do Cercal.
Aí só nos resta baixar a cabeça e circular pela direita, resmungando uns monossílabos guturais aos outros que, de lá, também nunca mais saíram.
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