Pulo do Lobo, Mértola, Portugal
A Praça da Cidade Velha movia-se com a precisão de um relógio. Uma quantidade astronómica de pessoas desfilava pela neve em círculos aparentemente aleatórios, marcando a cada passada silenciosa e a cada encontrão respeitoso um compasso da batuta do tempo, esse velhaco.
Um observador mais atento à minúcia, digamos, com predileção por mecanismos e automatizações, podia-se deleitar a constatar, do alto da torre, quatro tipos de tempo: um tempo comum, como aquele que é gasto por um assobiar de mãos nos bolsos ao chutar uma beata, um tempo boémio, de vagos contornos formados pelo adensar dos vapores etílicos na escuridão, um tempo variável, que é aquele que nos diz o velho semeador ao olhar o céu, e um tempo estranho, como quando nos querem impingir o que demora a chegar até outra galáxia, como se existisse tal coisa medonha.
Ora esse mesmo observador, chamemos-lhe Orloj agora que temos alguma intimidade, iria certamente intrigar-se e tamborilar os ponteiros, ao aperceber-se das duas figuras que acabavam de entrar na praça.
Uma delas, esguia e altiva como a numeração romana, era certamente bailarina; as marcas que deixava na neve soavam a redemoinhos e ondulações tranquilas. Tinha até o seu próprio tempo, o que era inclassificável. Quem se acertasse por ela, perdia a noção da realidade, quem teimasse em dar corda ao siso nunca lhe poria os olhos em cima.
No entanto, esta figura à parte, e por motivos que nem Mikulas de Kadan seria capaz de estruturar, estava secretamente ligada a uma outra. Estudando com instrumentos próprios, reparamos que, nos seus volteios elípticos pela praça, esta bailarina formava um padrão de rigor centrado numa figura circunspecta que caminhava em passo sereno. Pela naturalidade da postura, corte do sobretudo e traça do nariz, podia-se afirmar, sem risco, que estávamos na presença de um nutricionista.
O seu olhar calmo denotava a confiança num plano elementar, mas a cada corrente de ar perfumado, as suas tabelas confundiam-se, os horários sobrepunham-se e um exame mais aprofundado indicaria claramente uma falha no metabolismo. Indiferentes a estas questões intemporais, as pessoas continuavam a desfilar.
Nisto, o galo cacarejou. Era chegada a hora cheia. Todos os olhos se levantaram para o desfile dos 12, numa confluência dos quatro tempos.
No meio de tantos, de olhar perdido, apenas dois se encontraram.
Sem comentários:
Enviar um comentário