20130909

Camden Town, Londres

- Tum-tum-tráa! Tum-tum-tráa!
O coração do baterista quase lhe  saltava do peito, ao ressoar das peles. Todos os pezinhos destros batiam em uníssono, acompanhados por uns quantos canhotos, num Dominium Theatre completamente esgotado. No palco, uma história apaixonante de amor pela música passada num futuro distante. Na plateia, uma história apaixonada de amor pela musa, acontecia no presente.
O virtuoso baterista, acompanhado por uma chef de requinte, estava visivelmente emocionado, conquistado por muito mais do que o estômago. A boémia dos últimos dias, a rapsódia de sabores e odores por onde tinham rodopiado, tinha deixado marcas fortes numa relação em crescendo.
Ainda no dia anterior, depois de revolvidas as terras férteis de Covent Garden e exorcizados os anti-cristas de Camden Town, comungaram à mesa itálica de um britânico onde pontuavam as olivas. A experiente chef desfazia-se em sabores, mas perdia a mão ante a velocidade a que o peito batia. As mil e uma maneiras de preparar o pitéu encavalitavam-se de tal forma, que o resultado era um verdadeiro prato de choque. Mas o bom gosto saía sempre ileso da escaramuça. O baterista, um perfeito estarola mas também um incorrigível romântico, podia devorar timbalões de conduto que ficava sempre com um travo de paixão entre os lábios. Um caso de pão e manteiga, sem dúvida nenhuma.
Thunderbolt and lightning! Assustador. No teatro, com a multidão ao rubro, os dois lançam-se em delirantes efusões de alegria, movendo-se como um só. Naquele mar de corpos, navegam como figuras de proa. Os cânticos são memoráveis e todos os sabem de cor. Não sendo iniciáticos, fazem passar ao nível seguinte. Ambos sentem que o ritmo é, agora, comum, e o gosto mais apurado.
Um verdadeiro espetáculo acontecia ali. Chamava-se qualquer coisa como "You will rock me".
Ilha da Madeira, Portugal

Há matérias extremamente combustíveis. Substâncias que exigem um manuseamento cauteloso. Qualquer decoradora capaz, como aquela sobre a qual nos debruçamos agora, incluiria nesta categoria as organzas, os tafetás, o teixo seco, o papel machê e os corações soltos. Quando perto destes materiais há que usar da máxima prudência no que diz respeito ao despoletar de faíscas. Sob o risco de perdermos o controle das nossas vidas.
Ora, como toda a gente sabe, um comentador televisivo, habituadíssimo a opinar sobre assuntos do foro alimentar, passa ao lado destes assuntos altamente inflamáveis. Figura pública e habitué dos media, destila confiança quando aponta o dedo ao refogado ou aplaude uma sopa bem feita. Mas em tertúlia, em amena cavaqueira, e quando a temperatura sobe, tende a desvalorizar os vapores etílicos da componente alcoólica de uma sangria, esquece o quão fervilhante uma cantiga se pode tornar, e lança até, pobre inocente, ocasionais lampejos.
Foi exatamente isso que acabou por acontecer, nessa noite, em Vermoim. O discurso inflamado do incauto comentador, induzido, certamente, pela envolvente altamente estética da presença da decoradora, só não resultou numa desgraça, devido à providencial existência de um magnifico espelho de água no local, que arrefeceu os ânimos.
No rescaldo, apurou-se que a centelha não esmoreceu. Pelo contrário. Lançou-se em rastilho artesanal, alimentada pelo bombear daqueles dois corações quentes, atravessando uma vasta feira de emoções.
E a coisa não ficou por aí, como juram a pés juntos várias testemunhas oculares, ouvintes atentos e outros fulanos e sicranos, possuidores de narizes extraordinariamente farejadores, que usualmente acompanham as vidas mais interessantes do que as suas. Foram assinaladas algumas labaredas fulgurantes a iluminar os vetustos jardins do Mosteiro de Tibães, originando uma tal desordem Beneditina que até o protegido azevinho e a bela aveleira se ruborizaram, deleitados.
Mais tarde, nesse dia, num recôndito ristorante italiano, ouviu-se um pedido sussurrado. E não foi pela suculenta lasagna nem pelo doce tiramisú.
Falésia, Albufeira, Portugal

Das terras de Olhos d’Água erguia-se uma colossal falésia, abrupta e amarela, que só sossegava nas costas de Rocha Baixinha. Pelo caminho, este muro sem vergonha separava as areias dos pomares, as serras das dunas, as gentes das ondas. De uma falésia assim, não se pode falar sem baixar um pouco a cabeça, em respeito. Só um punhado de tolos a sobe apenas como miradouro. Quem a acompanha ao longo das suas corcovas e fendas, de coração puro e vista larga, é que vive verdadeiramente.
Sem nos afastarmos muito da narrativa, aproximamo-nos de um dos trilhos que penteia este maciço altaneiro para observar cuidadosamente o personagem que aí recupera o fôlego.
Pelo traje cingido, alvíssimo, identificamos um nobre ciclista montado num poderoso cavalo negro. O suor escorre lentamente pelos flancos metálicos da montada. Quem ousasse levantar os olhos, lá de baixo, ficaria cego com o brilho raiado de dois sóis. Um sorriso dança-lhe nos lábios secos e as narinas dilatam ao odor das alfarrobas; não tanto pela sensação de vitória como pela de comunhão.
Mais adiante, ainda fora de vista, contornando a chusma de figueiras, saltando a grade ferrugenta e logo após o aluimento da arriba, alguém se aproxima em passo corredor. É, nada mais nada menos do que uma professora a aprender estoicamente os caminhos da erosão. Resoluta, decora os relevos e disseca cada tronco seco, enquanto dá notas de dificuldade a cada inflexão de rumo. Mas a falésia, caprichosa e ciumenta, estende-lhe um ardil. Lança-lhe paisagens magníficas ao mesmo tempo que a surpreende com ramos baixos; sopra-lhe odores doces e inebriantes enquanto a rasteira com raízes espinhosas. Tudo isto a professora assimila e resolve. Mas a luta é desigual, a falésia imensa e a criatura humana frágil.
Uma simples depressão, no terreno, uma fendazita recém-aberta engole a carne viva, torcendo o pé de apoio. Uma aguilhoada dolorosa atravessa-lhe o corpo, soltando-se pela língua num grito desmaiado. O corpo inerte rola por entre as estevas até uma poça de areia fina banhada pelo sol. Ali fica, sem sentido.
Uns instantes depois, numa semi-inconsciência, sente uma sombra a refrescar-lhe a pele e o corpo a ser içado para a estabilidade de um colo firme. O suave movimento rolado do alazão fá-la abrir os olhos. Na segurança de um abraço forte, a cabeça pousada no ombro do ciclista, a professora vê a falésia derrotada a ficar para trás, fugindo dos dois, numa velocidade furiosa.
Pulo do Lobo, Mértola, Portugal

A Praça da Cidade Velha movia-se com a precisão de um relógio. Uma quantidade astronómica de pessoas desfilava pela neve em círculos aparentemente aleatórios, marcando a cada passada silenciosa e a cada encontrão respeitoso um compasso da batuta do tempo, esse velhaco.
Um observador mais atento à minúcia, digamos, com predileção por mecanismos e automatizações, podia-se deleitar a constatar, do alto da torre, quatro tipos de tempo: um tempo comum, como aquele que é gasto por um assobiar de mãos nos bolsos ao chutar uma beata, um tempo boémio, de vagos contornos formados pelo adensar dos vapores etílicos na escuridão, um tempo variável, que é aquele que nos diz o velho semeador ao olhar o céu, e um tempo estranho, como quando nos querem impingir o que demora a chegar até outra galáxia, como se existisse tal coisa medonha.
Ora esse mesmo observador, chamemos-lhe Orloj agora que temos alguma intimidade, iria certamente intrigar-se e tamborilar os ponteiros, ao aperceber-se das duas figuras que acabavam de entrar na praça.
Uma delas, esguia e altiva como a numeração romana, era certamente bailarina; as marcas que deixava na neve soavam a redemoinhos e ondulações tranquilas. Tinha até o seu próprio tempo, o que era inclassificável. Quem se acertasse por ela, perdia a noção da realidade, quem teimasse em dar corda ao siso nunca lhe poria os olhos em cima.
No entanto, esta figura à parte, e por motivos que nem Mikulas de Kadan seria capaz de estruturar, estava secretamente ligada a uma outra. Estudando com instrumentos próprios, reparamos que, nos seus volteios elípticos pela praça, esta bailarina formava um padrão de rigor centrado numa figura circunspecta que caminhava em passo sereno. Pela naturalidade da postura, corte do sobretudo e traça do nariz, podia-se afirmar, sem risco, que estávamos na presença de um nutricionista.
O seu olhar calmo denotava a confiança num plano elementar, mas a cada corrente de ar perfumado, as suas tabelas confundiam-se, os horários sobrepunham-se e um exame mais aprofundado indicaria claramente uma falha no metabolismo. Indiferentes a estas questões intemporais, as pessoas continuavam a desfilar.
Nisto, o galo cacarejou. Era chegada a hora cheia. Todos os olhos se levantaram para o desfile dos 12, numa confluência dos quatro tempos.
No meio de tantos, de olhar perdido, apenas dois se encontraram.
Portel, Évora, Portugal

O corredor nada vigorosamente pelo mar de gente que enche a Route de Suresnes. De vez em quando uma vaga de suor bate-lhe contra o peito, travando a passada certa com que vem atravessando a cidade engalanada. Não fosse o bolso interno dos calções picar-lhe os quadríceps sempre que alça a perna direita, podia considerar-se o homem mais feliz do mundo.
Do outro lado da multidão as coisas correm bem mais devagar. Uma maratona de compras escorre lenta como lava pelas montras da Avenue Foch. A empresária abre caminho, atenta às oportunidades da capital luminosa. As mãos frias lembram-lhe o esquecimento das luvas na mesa atafulhada do ‘Le bar à Champagne’, quando saiu disparada, sem saber muito bem porquê. Assim, vai dando palmadas nos sobretudos felpudos à sua frente, abrindo caminho e ativando a circulação.
Próximo do fim do calvário o corredor tropeça e - cruzes! - quase cai redondo no chão. Valem-lhe uns reflexos ímpares e uma guinada na coxa para o espicaçar de volta à prova. À sua volta o túnel de algazarra adensa-se e os adversários rareiam. O coração apertado parece explodir ao vislumbrar o fim da provação. No entanto, sente que a prova não termina naquele traço na estrada. Sabe (o inexplicável tem destas coisas) que tem de ir mais além, se quer aliviar o coração, e a coxa.
A empresária arregalou os olhos. Por instantes pareceu-lhe ver uma oportunidade interessante, alinhada no vazio criado pela movimentação das cabeças. Por instantes apenas, logo engolida pelo ondular das gentes, que abrandava, formando uma parede ruidosa. Habituada a ultrapassar as dificuldades, aninhou-se atrás de um casal nórdico, deu um impulso, rodopiou por entre dois casacos de marta-zibelina e um polícia distraído, saltou graciosamente sobre uma grade amarela, acabando por aterrar numa imensa clareira, junto a um traço forte no chão.
Esgotando as últimas vidas, o corredor ultrapassou a própria passada num anseio poderoso de ir além daquela meta. Mas no preciso momento em que a calcava, algo de extraordinário aconteceu; uma daquelas coisas que marcam, essas sim, o final de uma provação. Através daquela massa humana que gritava, irrompeu, enérgica, a mais extraordinária criatura que jamais tinha visto. Ofegante e suado, ante tal recompensa, caiu de joelhos sentindo uma ferroada no músculo. Levou a mão ao bolso e retirou de lá um magnífico anel que brilhava quase tanto como os olhos da empresária.

20130906

Ilha da Madeira, Portugal

Hoje distraí o gajo sisudo com umas azeitonas temperadas. Passei uma palheta ao calmeirão enxofrado que me fazia a vida negra, e o homem caiu de fuças num jasmim perfumado. Havia ali um sacana dum tristonho que não me largava; acertei-lhe o passo com um trautear alegrete. Quando confrontei o sujeito problemático com uma rabanada de vento leste, ele lambeu os beiços e não disse mais nada. A um canto lúgubre estava o tal fulano amuado; foi só mudar o registo para um canto mais do tipo ‘barbershop’ que ele traçou logo um desenho mais animado. Recostados no murete amarelo, um grupo de tratantes com a mosca franziam as sobrancelhas. Mas nada que uma boa depilação com cera de abelha não resolvesse. Saíram dali a sacudirem-se, levezinhos.
Dei por mim sozinho. Que agradável.

20130904

Funchal, Madeira, Portugal

O carreiro de formigas seguia ordeiro, como uma lombriga preguiçosa. Uma fila para lá, uma fila para cá, aqui e ali uma cerimoniosa marrada, enfim, tudo o que uma sociedade funcional e acomodada poderia desejar. Nunca faltavam belas migalhas a fazer vergar os costados das laboriosas. Que contentes insetos, que enorme felicidade enchia o peito destes seres insignificantes.
De vez em quando, um galho em forquilha caía de um carvalho próximo, entroncando o trilho; outras vezes, um seixo liso e intransponível testava a progressão do carreiro. E houve aquela vez - assustadora! - em que se depararam com uma duna de cal viva quando tentavam subir ao muro, pela tangerineira. Em momentos como estes, as formigas, tenazes, enchiam-se de submissão, baixavam ainda mais a cabeça e passavam ao largo do problema. Era uma vida perfeita, admirável.
Um dia, alguém com uma mentalidade infantil, alguém cruel e galhofeiro, pisou deliberadamente e com grande violência, o meio do carreiro. Duas fileiras destes belos seres foram imediatamente consumidas pela pressão, numa área correspondente a uma sola. Nas imediações, num perímetro de cerca de sete centímetros, voaram corpos aos pedaços, atingidos pela onda de gravilha. Daí em diante, e ao redor, foi o caos total. A compostura, a ordem e a beleza da simplicidade deram lugar ao aleatório, o que, como todos sabemos, conduz ao fim da civilização. As filas de formigas entraram em movimentos de enxame, induzindo o pânico em esquema de pirâmide. Rapidamente, o que era antes uma sociedade ignorada, de tão enfadonha, passou a ser referenciada como vergonhosa, por uns, e repentinamente apetitosa, por outros.
Enquanto o pé ali ficou, ameaçador, o comportamento destas formigas, que sempre tinham evitado o confronto com grande sucesso, foi o pânico organizado, a abnegação como cartilha e o lamuriar pelos cantos. Esta nova postura inflamou pelo carreiro de tal maneira que até as formigas de longe, ignorantes da situação esmagadora, passaram a comportar-se como ratos.
E, afinal de contas, era tão fácil terem trepado pela perna acima, em fila indiana, e quebrado o sujeito com irritantes comichões.